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Para Ícaro Silva, a vida é mais do que um cabaret

Um dos maiores clássicos musicais, "Cabaret", recebe uma nova versão brasileira, dirigida por Kleber Montanheiro

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 9 mar 2024, 14h15 - Publicado em 7 mar 2024, 09h00

Os festejos antes da guerra. Essa é uma das maneiras de descrever o musical Cabaret, do dramaturgo Joe Masteroff, que ganha uma nova adaptação teatral brasileira em 8 de março, no Teatro Santander, em São Paulo. Embora Joe tenha nascido e morrido nos EUA, a história de seu mais conhecido musical se passa em Berlim, na Alemanha. E, apesar de ter estreado na Broadway em 1966, a história se desenrola no fim da década de 1920 e início de 30. O texto original foi adaptado da peça I am a Camera, que, por sua vez, se baseou no livro de Christopher Isherwood, Adeus a Berlim. A peça conta com as músicas de Fred Ebb e John Kander.

Lá se foram 58 anos desde a estreia do espetáculo. Desde o primeiro momento, ele se tornou um sucesso absoluto e ganhou diversas adaptações para o teatro e cinema. Foi imortalizado, inclusive, no filme de 1972, com Liza Minelli. Mais tarde, surgiram algumas montagens no Brasil. A primeira delas data de 1989, com direção de Jorge Takla e José Possi Neto. Pouco mais de duas décadas depois, em 2011, Miguel Falabella encenou o musical com Claudia Raia interpretando Sally, uma das personagens centrais. E, finalmente, neste ano, a obra é revisitada pelas mãos de Kleber Montanheiro.

Ícaro Silva e Fabi Bang
(Produção/Cabaret/divulgação)

Rebatizada de Cabaret Kit Kat Club, o verdadeiro nome do local da peça, o musical conta a história de um escritor estadunidense, Cliff Bradshaw (que ganha vida por Ícaro Silva), que divaga em busca de inspiração para o seu próximo romance e viaja para Berlim, um território que já vive a decadência e testemunha a ascensão do partido nazista. Em sua primeira noite, Cliff entra no Kit Kat Club e é arrebatado pela cena que encontra ali: um antro de liberdade, sensualidade e arte, o que parece perfeito para a sua missão. O mestre de cerimônias é Emcee (interpretado por André Torquato), um personagem de gênero fluido, que está à frente dos números mais icônicos do musical. No Kit Kat Club, Cliff conhece Sally (nesta versão interpretada por Fabi Bang), uma das performers do Cabaret. Logo, os dois se apaixonam e vivem um romance.

Como pano de fundo do romance e a radiância do Cabaret, está a podridão do nazismos, que ganha cada vez mais força e ameaça a existência e o modo de vida daqueles que vivem e trabalham no Cabaret. Sally descobre que está grávida de Cliff e diz querer abortar. Cliff, por sua vez, atento às mudanças no país, propõe que os dois partam para os EUA. Para Sally, isso significa abandonar seu glorioso estilo de vida. Bom, daqui para frente, são apenas spoilers.

A montagem deste musical é um dos grandes projetos de vida de Kleber Montanheiro. Ele conta que foram muitos anos cultivando esse sonho. Uma das dificuldades estava na aquisição dos direitos. É permitida apenas uma montagem por idioma, ou seja, não é possível duas adaptações no Brasil ao mesmo tempo. Além disso, a produção não possui autorização para adaptar ou mudar cenas do texto. Isso envolve até mesmo os nomes dos personagens, que precisam ser mantidos como no original. “O máximo que podemos fazer é um corte aqui ou ali”, conta Kleber durante um dos ensaios do musical.

“Em contrapartida, há liberdade criativa no que tange às coreografias, ao cenário, à indumentária e ao visagismo. Nesse aspecto, a versão de Kleber se distingue muito da versão clássica de “Cabaret”. Uma das principais mudanças está no estilo imersivo do Cabaret, que será apresentado ao público como um bar. Parte da plateia poderá se sentar nas mesas distribuídas em volta do palco, podendo beber e comer durante o espetáculo. Mas, como tudo tem um preço, quem estiver perto pode esperar ser chamado para uma interação.”

Kleber Montanheiro, diretor da peça Cabaret
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Quem nos acompanhou nessa aventura pela adaptação de Cabaret foi ninguém menos que Ícaro Silva, que tem se consolidado fortemente na televisão, mas possui experiência com o teatro musical. Ícaro tem se dividido entre os ensaios da peça e as filmagens da minissérie da HBO Máscaras de oxigênio (Não) caíram automaticamente, dirigida por Marcelo Gomes. Cliff, seu personagem, é o forasteiro, que, assim como o público, tem a visão externa do Cabaret. Confira nossa conversa na íntegra:

Já vimos no “Dança dos Famosos” que você não tem muitas dificuldades em aprender passos complexos de dança ou a cantar. Quais foram os desafios específicos ao se preparar para Cabaret?
Acho que Cabaret é um musical de outra época e cultura. O primeiro desafio foi entrar no clima dos anos 30, levando em conta o contexto histórico, mas mantendo nossa perspectiva cultural brasileira de 2024. Porém, é justamente isso que torna esse musical interessante. É onde encontramos pistas para entender o enredo.

Você se inspirou em alguma versão ou representação específica para criar seu personagem?
Não, nas primeiras conversas com o Kleber [Montanheiro], ficou claro que este é um musical muito querido para ele e que ele tem uma visão específica da obra, o que eu admiro muito. Uma das inspirações para minha interpretação é a paixão da direção e do elenco por esse projeto. Estamos construindo algo novo. Embora eu tenha visto outras montagens, essas referências fazem parte do processo, mas também são descartáveis na criação, pois queremos algo fresco. Acredito que esse musical tem uma visão política e social do mundo que sempre será relevante para a sociedade.

A ideia de Cabaret serve como metáfora para algo maior? Existe alguma conexão com a atualidade?
Sim, há uma frase de Simone de Beauvoir sobre as mulheres, que diz que os direitos nunca são garantidos e é preciso estar sempre alerta. Isso se aplica a todos os grupos marginalizados, aqueles que não estão no centro do status quo, que não fazem parte da parcela dominante da sociedade. Cabaret aborda esses grupos marginais e quando vemos essas pessoas, com seu brilho e vontade de continuar vivendo, naturalmente nos conectamos com nossa sociedade atual. Sempre haverá pessoas marginalizadas lutando pela sobrevivência.

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Quando me coloco no lugar de Ícaro, e do personagem, mas especialmente como artista, quero entender o que está alinhado com nosso tempo e nosso público.

Ícaro Silva em Cabaret
Ícaro Silva em Cabaret (Produção/Cabaret/divulgação)

Pode nos contar um pouco sobre seu personagem?
Clifford Bradshaw é um escritor que chega a Berlim nos anos 30, durante a ascensão do nazismo na Alemanha. Ele é um sonhador em busca de inspiração para seu próximo romance. Viaja por várias capitais em busca disso, mas ao encontrar pessoas tão livres em sua própria existência, naturalmente se inspira. Eu me identifico muito com isso. Acredito que espaços artísticos como cabarés, teatros e escolas são fontes de inspiração. Ele representa nossa visão de fora, de alguém que chega ao cabaré. Ele conhece esse universo, se apaixona por ele e passa a se entender melhor a partir dele. O público estará no meio da montagem. As cadeiras e mesas estarão no meio do cabaré. E é Clifford quem apresenta o Cabaret ao público.

O espetáculo será interativo. O que podemos esperar exatamente?
Seria hipócrita responder isso agora, já que ainda estamos no processo. A ideia é que seja uma experiência imersiva, além disso, com interação e envolvimento do público, indo além de uma montagem tradicional com plateia. No teatro, às vezes temos a sensação de que estamos invisíveis para os atores, o que não é verdade. O público faz parte do jogo cênico. Essa presença dentro do cenário vai permitir que as pessoas se envolvam de forma mais intensa, o que acredito ser muito agradável no teatro.

Cabaret foi escrito na década de 1960 e teve várias montagens e adaptações para o cinema. O que explica, na sua opinião, esse fascínio duradouro pelo musical?
Acredito que tenha a ver com a liberdade explorada no musical. Mesmo em 2024, ainda buscamos entender o que é liberdade. O musical equilibra-se entre o hedonismo e a brutalidade, que são elementos essenciais da vida. Todas as questões existenciais presentes em Cabaret refletem nossa busca pela liberdade e pela melhor forma de viver. Os contextos podem mudar, mas as perguntas permanecem as mesmas. Quando Sally diz que a vida é um cabaré, ela fala tanto no bom quanto no mau sentido. Afinal, o cabaré é um lugar marginalizado, muitas vezes caótico, mas também é um espaço de alegria, arte e encontros.

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O que essa liberdade de Cabaret representa?
Sinto que houve uma separação entre teatro, performance e vício, ilegalidades que podem ser encontradas em um cabaré. Isso está relacionado ao surgimento da arte como profissão e à monetização do prazer e do vício. Encontramos maneiras de ganhar dinheiro não apenas com a arte, mas também com o vício. Essa liberdade representa a busca pela identidade e pelo propósito na vida, questões fundamentais para os artistas. A arte nasce dessa inquietação humana.

Há alguma cena ou número mais difícil no espetáculo? Qual?
Há uma sequência de cenas finais em que Cliff e Sally confrontam a dura realidade do cotidiano. Eles estão imersos em uma experiência lúdica no cabaré, então essa transição é bastante desafiadora. Mostramos ao público uma possibilidade fascinante de viver no cabaré, como artistas, e quando confrontamos isso com a realidade, é chocante. Mas é nesse confronto entre arte e vida que a arte se expressa.

Musical-Cabaret
Musical Cabaret ganha uma nova adaptação teatral brasileira (Caio Galluccci/divulgação)

Estar em cartaz com uma peça comum é cansativo, mas um musical demanda ainda mais energia física. Como é a rotina de trabalho e de recuperação de vocês?
O espetáculo é muito vigoroso, com muita energia e movimento. O cenário é mutável e dinâmico, com números de dança intensos. Será um musical exigente, mas também uma celebração da alegria. Costumo dizer que o teatro musical é o meu atletismo. Na minha infância, tive dificuldade com esportes devido à competição e a uma falsa ideia de masculinidade. Encontrei no musical uma experiência atlética e física que precisa ser cuidada.

É uma vida atlética, que requer muita hidratação, descanso e sono adequado. Ontem tivemos ensaio e eu não dormi cedo o suficiente, então já estou sentindo o cansaço. Alguns membros do elenco fazem imersão em gelo, fisioterapia e outros tratamentos para manter o corpo saudável e pronto para o espetáculo. Existe um alto nível de disciplina e foco necessários para qualquer construção artística, mas no teatro musical, o cuidado com o corpo é essencial. Estamos sempre atentos.

Quando você começou a se interessar por dança e música?
Foi algo muito natural para mim. Foram meus caminhos para sair da marginalização. Nasci em uma periferia distante, com poucos recursos. Essas oportunidades artísticas foram mais do que uma fuga; foram um novo encontro com o mundo. Como disse Elisa Lucinda, quando estamos à margem, conseguimos ver tudo com clareza. Pessoas negras raramente se confundem com elementos da cultura branca, pois vemos como a classe média branca se organiza. Através da arte, estou me reconectando com o mundo em que quero viver.

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Musical-Cabaret
Musical Cabaret ganha uma nova adaptação teatral brasileira (Caio Galluccci/divulgação)

Assim como muitos grandes clássicos musicais, os protagonistas tradicionalmente, devido ao racismo, foram interpretados por atores brancos. Cabaret não é exceção. Essa mudança nesta versão adiciona outras camadas à história?
Essa é uma nova abordagem para entender meu personagem, levando em conta sua racialidade. Clifford é um americano que chega a Berlim nos anos 30. Se considerarmos a existência de um homem negro naquela época, fazendo essa viagem, a história ganha uma dimensão diferente daquela imaginada pelo autor da peça. Essa é uma camada social e cultural importante que não pode ser ignorada. Acredito que uma peça fica defasada se não incorporar essas camadas que são tão presentes em nossa sociedade. Isso enriquece o personagem. E qualquer espetáculo se beneficia da diversidade. O meio musical está compreendendo isso, pois por muito tempo foi dominado por mãos brancas. Percebo que há uma valorização crescente da diversidade, que vai além da representatividade; é sobre ver nossa sociedade refletida no palco.

Você tem algum desejo específico no teatro ou em musicais?
Estou desenvolvendo um novo musical. É um processo trabalhoso, mas acredito que o teatro musical tem o potencial de contar histórias muito mais diversas do que tem feito até agora. Queremos ver não apenas as histórias clássicas, mas também explorar novos temas. No meu espetáculo, quero trazer uma perspectiva mais queer e negra, falar sobre a criança queer negra que fui e que sou.

Cabaret

033 Rooftop
Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041 – Vila Olímpia, São Paulo – SP
De 8 de março a 12 de maio de 2024
Sessões: sextas-feiras às 20h30; aos sábados às 15h e 20h30; e aos domingos às 15h e 19h30.
Duração do espetáculo: 2h45 (com 15 minutos de intervalo)

Setores e preços:
Mesa: R$ 300,00
Camarote: R$ 250,00
Mesa bistrô: R$ 200,00
Preço popular: R$ 39,60

 

 

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