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Os momentos mais marcantes do Festival de Teatro de Curitiba

Tradicional festival de artes cênicas celebra a diversidade de linguagens artísticas; Bravo passou uma semana conferindo as atrações da mostra

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 4 abr 2024, 13h15 - Publicado em 2 abr 2024, 09h00

Curitiba é encantadora. Tem suas contradições, claro, como qualquer outra cidade brasileira. No entanto, possui particularidades que a tornam especial. Com um ritmo menos caótico do que em outras capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro, há mais tempo para respirar e contemplar as cenas e a poesia do cotidiano. A cidade se tornou uma das principais guardiãs do teatro nacional e o motivo disso é o Festival de Curitiba, que em 2024 comemora 32 anos.

Na última segunda-feira (25), teve início mais uma edição anual, com uma temporada que se estende até 7 de abril. São duas semanas de programação intensa, com mais de 300 atrações, como peças de teatro, dança, performances circenses e shows musicais. Como em qualquer outro festival com pretensões nacionais, um dos maiores desafios é construir um retrato verossímil da realidade, o que pode ser mais ou menos acertado. Na mostra deste ano, algumas correções de trajeto foram tentadas. É a primeira vez, por exemplo, que o Festival realiza um eixo amazônico, com quatro peças vindas de Manaus (AM).

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(Annelize Tozetto / Festival de Curitiba/divulgação)

Um dos momentos mais emocionantes desta primeira semana veio, justamente, do Amazonas. Na abertura do evento, uma multidão no Teatro Positivo presenciou a disputa dos bois Caprichoso e Garantido, do Festival Folclórico de Parintins, com a apresentação de “Caprichoso e Garantido: o Duelo da Amazônia”. Foi a primeira vez que as agremiações se apresentaram na região Sul do país, um modo generoso de artistas e produções de regiões e culturas completamente distintas se encontrarem e prestarem homenagens entre si.

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(Maringas Maciel / Festival de Teatro de Curitiba/divulgação)

Uma das principais estreias que ocorreram no Festival foi a peça “Agora é que são elas”, escrita e dirigida pelo comediante Fábio Porchat. Em nove esquetes, as atrizes Júlia Rabello, Maria Clara Gueiros e Priscila Castello Branco se revezam em situações corriqueiras e hilárias. Emocionado, Porchat lembrou que a peça resgata cenas criadas na época em que estudava na Centro das Artes de Laranjeiras (CAL), e tinha Paulo Gustavo como colega. Sentindo falta de fazer teatro, percebeu que faltavam espetáculos de esquetes no Rio de Janeiro. Resolveu vasculhar seus textos antigos em busca de algo novo. Com a tarefa concluída, precisava encontrar uma equipe de peso.

“Conseguimos reunir um time de comediantes de diferentes gerações. Participei de alguns desses esquetes com o Paulo Gustavo, 19 anos atrás, interpretando papéis de homem e mulher. Agora, são três mulheres que também se alternam entre papéis masculinos e femininos. Os esquetes são agêneros e atemporais, abordando situações cotidianas”

Fábio Porchat

“Conseguimos reunir um time de comediantes de diferentes gerações. Participei de alguns desses esquetes com o Paulo Gustavo, 19 anos atrás, interpretando papéis de homem e mulher. Agora, são três mulheres que também se alternam entre papéis masculinos e femininos. Os esquetes são agêneros e atemporais, abordando situações cotidianas”, contou o ator em coletiva de imprensa na cidade. Uma das conquistas de “Agora é que são elas” foi lotar quase todos os 3 mil assentos do Teatro Guairão, uma demonstração do interesse pelo teatro que persiste mesmo diante de tantas transformações na dinâmica da busca por entretenimento pelas redes digitais. Em abril, o espetáculo estreia no Teatro dos 4, no Rio de Janeiro.

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(Humberto Araujo / Festival de Curitiba/divulgação)

De São Paulo, a Cia de Revista levou a peça “Tatuagem”, adaptação musical de Kleber Montanheiro do filme de mesmo nome, dirigido por Hilton Lacerda. O espetáculo mostra uma trupe teatral pernambucana buscando criar e sobreviver durante a ditadura militar. Ali, nasce um romance improvável entre um ator e um militar. A história é inspirada no grupo Teatro Vivencial, que atuou entre as décadas de 1970 e 80. O musical é do estilo jukebox: conta com mais de 20 canções adaptadas dos discos de As Baías; uma delas foi composta especificamente para o espetáculo. Com estreia em 2021, a peça tem resistido ao longo dos anos com participações em festivais e temporadas em diferentes cidades. No entanto, uma das qualidades do espetáculo é poder vê-lo no tipo de ambiente para o qual foi concebido, na região central de São Paulo, numa mistura de teatro e cabaré, com o público mais próximo da cena. Em Curitiba, a peça foi apresentada no Guairinha. Mesmo com diversas falhas e interferências nos microfones, o elenco conseguiu empolgar o público.

A ideia da peça surgiu durante a pandemia, de forma descompromissada, num momento de ócio, enquanto Kleber assistia ao filme de Lacerda. Nas cenas, ele foi enxergando possibilidades de inserir algumas canções.

“Entendo que nossa responsabilidade como artistas é lutar pelo que precisa ser lutado, resistir e criar condições para que essas conquistas e memórias sejam sempre lembradas e não se apaguem”

Kleber Montanheiro

“Acho bastante plausível essa narrativa atualmente. Houve um período de luta em que essas pessoas precisavam existir. O filme aborda os artistas enfrentando a repressão da ditadura militar. Penso que hoje em dia alcançamos diversas conquistas. Entendo que nossa responsabilidade como artistas é lutar pelo que precisa ser lutado, resistir e criar condições para que essas conquistas e memórias sejam sempre lembradas e não se apaguem”, afirmou o diretor Kleber Montanheiro.

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(Annelize Tozetto / Festival de Curitiba/divulgação)

Um pouco mais distante do centro histórico, na arena do centenário Teatro do Paiol, a atriz Renata Carvalho se prepara para entrar em cena com “Manifesto Transpofágico”. Não se trata exatamente de um espetáculo convencional, mas sim, como o próprio nome sugere, de uma manifestação sobre ser e resistir enquanto um corpo travesti. A montagem é dividida em dois momentos. No primeiro, a atriz usa a poesia da cena para falar sobre as violências pelas quais mulheres trans e travestis foram e são submetidas no Brasil. Ela se apresenta como alguém que contém toda essa violência, mas que traz também um grande desejo por mudança. Então, no segundo ato, ela acende as luzes da plateia e passeia entre o público para fazer perguntas e também tirar dúvidas sobre questões relacionadas a gênero e transexualidade. Nesse diálogo, a plateia é confrontada: “Quantos de vocês têm amigos trans?”, é uma das perguntas que ela faz. Aos poucos, a tensão diminui, e as respostas antes objetivas se tornam depoimentos de pessoas que testemunharam dificuldades e até superações de embates entre familiares e pessoas trans.

“Quantos de vocês têm amigos trans?”

Renata Carvalho
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(Annelize Tozetto / Festival de Curitiba/divulgação)

A dramaturgia resultou de outro processo que Renata viveu com a peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, uma adaptação do texto de Jo Clifford. Renata interpretava Jesus, algo que incomodou uma boa parcela. Como resultado, a peça chegou a ser censurada algumas vezes. Com o espetáculo, Renata sofreu diversas ameaças e precisou lidar com crises de ansiedade. Página virada, as coisas foram se acalmando, e foi crescendo nela a vontade de usar o teatro para mudar uma realidade.

“Quero contar uma história que eu possa alcançar o coração, abrir a mente, tirar dúvidas. Muitas dessas informações que estão por aí sobre nós, são falsas, são equivocadas. Esta luta também é pedagógica. O Manifesto surge do desejo de querer mudar o nosso entorno”, disse a atriz Renata Carvalho, em coletiva à imprensa.

“Quem detém a narrativa, detém o poder. Quando nós mudamos essas narrativas, nós abalamos o imaginário social. É importante ver travestis tendo outras possibilidades de vidas”, concluiu a atriz.

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(Annelize Tozetto / Festival de Teatro de Curitiba/divulgação)

Para encerrar o fim de semana, um dos mais renomados atores do teatro brasileiro brilhou em Curitiba. Na sexta-feira, uma fila se estendia pela esquina em frente ao Teatro Guaíra, com várias pessoas segurando cartazes em busca de ingressos para a peça “Traidor”, protagonizada por Marco Nanini e dirigida por Gerald Thomas. No enredo, um ator enfrenta um tormento peculiar, no qual ele se confunde com os pensamentos e sentimentos dos personagens que interpretou. Esse peso imaterial o leva a um vazio constante, levando-o ao isolamento da humanidade.

Com maestria, Nanini protagoniza um monólogo, ocasionalmente acompanhado por um coro – os fantasmas de seus personagens – que intervêm em momentos cruciais da história.

Após o sucesso de bilheteria em Curitiba, o espetáculo seguirá para a próxima temporada no Rio de Janeiro.

Reservar duas semanas para um festival de artes cênicas não é algo trivial. Durante esse período, um fluxo de artistas circula e agita a cidade paranaense, como um espetáculo à parte. Para os desavisados ou ocupados, sempre é possível deparar-se com uma ou outra intervenção de rua ou com peças do Fringe, a mostra paralela, no centro da cidade. Vale ressaltar, no entanto, que esta edição foi um pouco tímida ao ocupar o centro histórico. Afinal, um festival também funciona como uma oportunidade para motivar tanto a população local quanto os visitantes a experimentarem a cidade de uma forma diferente, explorando além do cotidiano de maneira lúdica e prazerosa. Isso, por sua vez, alimenta o desejo por uma realidade mais rica em arte e cultura. Quando um festival atinge seu propósito, ao término, ele inevitavelmente deixa saudades. Não foi diferente com Curitiba.

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