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O sonho do Parque Rio-Bixiga

O Projeto do Teatro Oficina para a construção de uma área verde no Bixiga, em São Paulo, dá passos largos rumo à sua tão esperada concretização

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 18 abr 2024, 11h41 - Publicado em 18 abr 2024, 09h00
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Simulação do projeto para o Parque do Rio Bixiga _ Teat(r)o Oficina e Universidade Antropófaga; Gesto Arquitetura; VELA. oficina; Geasa Engenharia; Projeto Cidade, Infraestrutura e Adaptação às Mudanças do Clima, da Universidade Mackenzie, em colaboração com integrantes do movimento em luta pelo Parque do Rio Bixiga. (Teatro Oficina/reprodução)
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O Parque Rio-Bixiga idealizado e defendido por Zé Celso e o Teatro Oficina, está mais próximo de se tornar realidade do que nunca. Neste ano, uma série de acontecimentos importantes indicam que a ideia está prestes a sair do papel. Agora, a proposta está sob a responsabilidade do Poder Executivo. A mais recente dessas movimentações foi a autorização da Justiça para destinar uma verba de R$ 51 milhões para a compra de um terreno de 11 mil m² que poderá abrigar o parque.

Origem dos recursos

Em dezembro de 2023, o Ministério Público de São Paulo propôs um acordo com a Prefeitura de São Paulo e a UNINOVE, estabelecendo uma indenização de R$ 1,050 bilhão. Esse pagamento faz parte de um termo assinado pela UNINOVE, concordando em pagar a multa para evitar um processo decorrente de um caso de corrupção ativa. Em 2013, surgiu a denúncia de que a instituição teria subornado agentes da prefeitura para evitar impostos.

Do total acordado, o Ministério Público sugeriu que R$ 51 milhões fossem destinados à compra do terreno pertencente ao Grupo Sílvio Santos (Grupo SS). Até então, a intenção do conglomerado era erguer três torres comerciais com mais de 100m, na área ao lado do Teatro Oficina. Anteriormente, também foi proposta a construção de um shopping center. Para os integrantes do Oficina, os dois projetos teriam consequências desastrosas para o meio ambiente e também para o bairro Bixiga. Uma das preocupações centrais é que debaixo do terreno passa um importante rio. Além disso, a iniciativa, na visão dos artistas e ativistas, poderia descaracterizar o bairro, acelerar o processo de gentrificação e comprometer a entrada de luz no Oficina (o prédio possui parte da fachada lateral de vidro).

Em 2016, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) indeferiu a construção das três torres pela corporação, compreendendo que o empreendimento prejudicaria o Teatro Oficina.

No final de 2023, a proposta foi celebrada pelo Teatro Oficina e por organizações sociais que advogam pela criação do parque. Contudo, havia incerteza sobre a aceitação do Grupo SS em vender o terreno por esse valor. Uma das hipóteses, em caso de recusa por parte da corporação, era a desapropriação do terreno. Meses depois, em abril deste ano, foi anunciado que o grupo empresarial estaria disposto a vender o terreno por R$ 80 milhões.

E na última semana, o jornal Folha de S.Paulo publicou que a prefeitura irá realizar uma avaliação imobiliária no local com técnicos da própria prefeitura para compreender o valor do terreno.

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O que acontece agora

Tudo depende da avaliação da propriedade. A prefeitura pode aceitar a proposta do Grupo ou oferecer uma contraproposta. Em caso de desapropriação, o valor pago ao proprietário é determinado pela Justiça.

Em paralelo a tudo isso, outra circunstância animou os defensores do parque. No dia 8 deste mês, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) protocolou um projeto que inclui o parque no Plano Diretor Estratégico. A atitude gerou surpresa, pois em 2020 o prefeito (na gestão Bruno Covas-Ricardo Nunes) vetou outra proposta do ex-vereador Gilberto Natalini (PV), aprovada na Câmara Municipal. Uma das justificativas era que o plano não dizia de onde os recursos viriam – um problema, aparentemente, solucionado.

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Vista do Teatro Oficina (Teatro Oficina/arquivo)

“Não se trata de uma briga de vizinhos”

Camila Mota, atriz e diretora, um dos braços fiéis de Zé Celso, persiste na linha de frente da luta. Mas, agora, ela reconhece que o protagonismo não é mais do Teatro Oficina para os próximos passos. “Nunca foi uma briga de vizinhos. Por mais que o Zé tenha sido um lutador importantíssimo nesses 40 anos de movimento pelo parque do Rio-Bixiga, colocar isso como uma questão de Zé Celso vs Silvio Santos, reduz muito a discussão, porque você tira de cena todas as outras perspectivas, como a emergência climática, o adensamento urbano. Apresentar isso como uma disputa entre vizinhos é uma narrativa muito conveniente para não resolver o problema”, explica Camila.

Até junho, o Oficina segue em cartaz com o espetáculo musical “Mutação de Apoteose”, dirigido por Camila Mota. A peça traz o Parque Bixiga como um dos personagens em cena.

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Na visão da diretora, um próximo passo fundamental é criar uma audiência pública para que a população conheça melhor o plano do parque. “O projeto foi realizado por grupo multidisciplinar e prevê a regeneração de uma parte do rio desse território. Há pouco mais de um ano foi feita uma medição da água, que é potável. Então trata-se de um projeto-piloto de regeneração da Bacia do Anhangabaú, que prevê a recuperação da mata ciliar. Devemos lutar para que essa implementação seja realizada.”

Mas na etapa atual, ela não deixa de comemorar. “Já é uma grande vitória ter qualquer parque ao invés de três torres. É um avanço significativo na perspectiva urbana. Nos últimos anos, temos enfrentado fortes ondas de calor, e a emergência climática se tornou uma questão concreta. É fundamental implementar um projeto-piloto de resfriamento da cidade, com solução hídrica e jardins de chuva. É essencial aproveitar esse momento para destinar esse recurso da multa para fazer, de fato, um parque que seja de vanguarda no sentido de contracenar com a situação atual do planeta”, conclui a artista.

A reportagem procurou o Grupo Silvio Santos via assessoria de imprensa, que disse que não iria se pronunciar.

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Simulação do projeto para o Parque do Rio Bixiga _ Teat(r)o Oficina e Universidade Antropófaga; Gesto Arquitetura; VELA. oficina; Geasa Engenharia; Projeto Cidade, Infraestrutura e Adaptação às Mudanças do Clima, da Universidade Mackenzie, em colaboração com integrantes do movimento em luta pelo Parque do Rio Bixiga. (Teatro Oficina/reprodução)

Nascimento de um sonho

A ideia de expandir o Oficina começou como um delírio – não seria exagero colocar desta maneira. O desejo de criar uma nova área verde na cidade, especificamente no tradicional bairro do Bixiga, se relaciona com as transformações que o teatro passou ao longo de sua velha história. Na década de 1970, o Teatro Oficina já era conhecido na cena artística por seu estilo arrojado. Zé Celso havia se firmado como um diretor revolucionário, que fazia frente à censura e às atrocidades da ditadura militar. O Oficina, portanto, era um local visado pelos militares e também pelas organizações paramilitares de extrema-direita, como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Por vezes, o elenco foi surpreendido com batidas policiais durante as apresentações. Havia uma dificuldade que o antigo teatro impunha, e que frustrava as chances dos atores fugirem dos espancamentos: a parede no fundo do estabelecimento.

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“Era uma das coisas necessárias durante a ditadura: ter uma saída de fundo”, conta o ator e viúvo de Zé Celso, Marcelo Drummond. Na ocasião, o grupo já ocupava o atual terreno, onde está localizada a sede do Oficina. E todo o entorno tinha um dono, que permanece o mesmo até os dias atuais: Silvio Santos. Para criar uma zona de fuga no teatro, Zé tentou um acordo com Silvio para construir duas portas naquela parede que encerrava o teatro. Foram algumas negativas, até Silvio finalmente aceitar.

Em 1972, dois anos antes de Zé se exilar em Portugal, o grupo montava a peça “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov. Certo dia, Zé e o fotógrafo Celso Lucas estavam no teatro e resolveram tomar um ácido. “Eles vieram para o fundo do teatro, fizeram uma mandala e atravessaram a parede. E ali, Zé enxergou um teatro grego fora do teatro”, conta Marcelo enquanto aponta para o terreno aberto no fundo do Oficina. Quando a Bravo! visitou o espaço, os dois Arcos do Beco (duas portas com arcadas) ainda estavam abertos. Em fevereiro deste ano, eles foram emparedados, após décadas a comando do Grupo SS.

Atravessar aquela parede deu a Zé o primeiro vislumbre de que o teatro poderia se tornar algo muito maior. A viagem de ácido originou outro sonho: de criar um teatro de estádio, mas mais do que isso, um território que fosse comunitário, que conectasse ainda mais o teatro e o bairro. “Ele começou a desejar esse espaço”, continua o ator.

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Zé Celso (Jennifer Glass/arquivo)

Hoje, esse terreno possui algumas árvores e vegetação rala. Nos anos 1970 chegou a ser apenas um estacionamento. Naquele tempo, o teatro ainda não havia passado pela reforma projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que remodelou a construção emblemática do Oficina, o atual teatro-passarela.

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A colaboração entre o dramaturgo e a arquiteta começou na década de 1960. No fim daqueles anos, Zé testemunhou outra modificação na estrutura urbana, com a construção do viaduto Jaceguai em frente ao Oficina. Segundo Francesco Perrotta-Bosch, biógrafo de Lina Bo Bardi, parte dos destroços foi utilizada pela arquiteta – e então cenógrafa – na confecção do cenário da peça “Na Selva das Cidades”, de Bertolt Brecht, adaptada por Zé.

Na década de 1980, os antigos proprietários do terreno em que está o Oficina, decidiram que iriam vender o teatro. E quem estava em vias de comprar era ninguém menos do que o Grupo Silvio Santos. O coletivo teria que desocupar o local ou, numa atitude mais ousada, poderia comprar o terreno. Decidiu tentar a segunda opção. Para isso, mobilizaram financiamento coletivo, que ainda não foi suficiente para a compra da propriedade. Surgiu então outra ideia. “Começou um movimento de artistas para tombar o Oficina para que o lugar continuasse sendo um teatro. E conseguiram”, complementa Marcelo.

Foram dois pedidos de tombamento indeferidos. Apenas quando o geógrafo Azis Ab’Saber assumiu provisoriamente a presidência do Conselho do Condephaat, que a medida avançou. Em 1982, o Oficina foi tombado ao nível estadual. Atualmente, ele é tombado nas três esferas (municipal, estadual e federal). Ao invés da compra, o território foi desapropriado, e o edifício transformado em teatro público, cujo administrador é o grupo Teatro Oficina Uzyna Uzona.

A partir da reconstrução do Oficina, em colaboração com Lina Bo Bardi, foi criado o teatro atual, inaugurado em 1993. Ao lado do desenho de Lina e Edson Elito, foi pensado um Teatro de Estádio, que ocuparia o espaço que pode dar origem ao parque. Na última década, a proposta foi reformulada. Lina faleceu em março de 1992, pouco antes da inauguração do novo teatro.

“O Teatro Oficina teve muito tempo um projeto chamado Anhangabaú da Felicidade, que era uma brincadeira com o nome Baú da Felicidade também. E previa uma oficina de florestas, que é na área verde, a Universidade Antropófaga e o Teatro de Estádio. Ele foi mais desenvolvido durante a encenação de ‘Os Sertões’. Foi feito uma empreitada feita pelo João Batista Martinez Correia e a Beatriz Pimenta Correia, irmão e sobrinha do Zé, que era muito inspirado nas descrições que o Euclides da Cunha fez das montanhas de Cocorobó. Era uma ideia muito bonita, porém, muito adensada de construção, então tinha muito concreto”, conta Camila. A diretora também explica que, embora se mostrasse inviável, foi importante para divulgar o desejo de ocupar aquele espaço.

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Área interna do Teatro Oficina (Teatro Oficina/arquivo)

Entre 2010 e 2015, Silvio Santos firmou um contrato de comodato com o Oficina, autorizando os artistas a utilizarem temporariamente o terreno vazio. “À medida que começamos a frequentar o terreno, percebemos a importância da área verde. O vazio se mostrou muito valioso, tornando nosso antigo projeto obsoleto em comparação com o potencial da vegetação resultante das demolições do Grupo Silvio Santos ao longo das décadas. Surgiu então a ideia do parque, que aproveitaria a extensa área verde já existente.”

Em 2017 foi elaborado o primeiro projeto de lei para o Parque Rio Bexiga, após diálogo com outros movimentos e pessoas do próprio bairro. “A companhia interagiu com muitas pessoas do Bixiga, realizando alguns rituais. E um Babalaô consultando os Ifás, para entender os desejos da terra. Isso mudou nossa abordagem, passamos a questionar o que a terra queria ser. Surgiu então a ideia de criar um pomar, em linha com o desejo de nutrição da terra”, conclui a diretora.

Antes de morrer (o dramaturgo faleceu em julho de 2023 aos 86 anos), Zé Celso tinha dois sonhos não realizados. O primeiro deles era a materialização do Parque-Rio Bixiga. O segundo, não tão distante do primeiro, no sentido de uma preocupação alinhada às questões ambientais com as quais Zé estava mais conectado, era a adaptação teatral do livro “A queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, na qual o dramaturgo vinha trabalhando. Os dois, enfim, têm a chance de nascer juntos.

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