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Aberração de um processo civilizatório

Winnie surge engolida por um vulcão carbonizado, agarrada às palavras em meio à estética cyberpunk dos homens-máquinas na nova montagem de Dias Felizes

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 27 jul 2023, 12h13 - Publicado em 27 jul 2023, 11h53

Um dia celestial. Mais um, entre tantos que vieram e que ainda virão. Em Dias Felizes, obra-prima de Samuel Beckett escrita em 1961, a personagem Winnie celebra a vida, ou que restou dela, engolida e oprimida pela terra, engolida e oprimida pelo que o homem fez de seu entorno e da própria humanidade.

Winnie sintetiza os mistérios da existência humana. Mesmo sugada pela terra, mesmo reduzida à miserabilidade de um cotidiano absurdo de ações irrelevantes e autômatas, mesmo tendo chegado ao estado máximo de restrição a que um ser humano pode chegar, enterrada, com a mobilidade da cintura para cima num primeiro momento e num segundo apenas da cabeça, ainda assim a força da vida se impõe. Ainda assim faíscas de um impulso vital iluminam o invisível fazendo seus dedos driblarem a arma que está ao alcance da sua mão, ao lado da escova de dentes, da sombrinha, do óculos, como a esperar pacientemente a sua vez, com a tranquilidade dos que sabem que sua vez chegará. E chegará? Quando? É o que parece nos perguntar Beckett. Até quando o homem irá aguentar sua própria desumanização?

Foto de cena da peça
(João Maria Silva Júnior/arquivo)

É Lavínia Pannunzio quem toma para si o desafio de andar na corda bamba entre as pulsões de vida e de morte de Winnie – papel icônico de grandes atrizes por ser quase um monólogo, pela dificuldade da imobilidade física, da falta de lógica da linguagem e da ausência da narrativa -, vivido duas vezes por Fernanda Montenegro, em 1970 e em 1995. Na montagem dirigida por Cesar Ribeiro, da cia. Garagem 21, em cartaz até final de julho em São Paulo, sua interpretação é arrebatadora. A atriz se equilibra nas forças contrárias de Winnie e enfatiza tanto o aspecto cômico como o trágico do texto. Faz um trabalho minucioso de voz que decupa sonoramente o fluxo ininterrupto de pensamentos incoerentes da protagonista, trabalhando-os melodicamente. Eleva o humor gerado pela automatização de seu personagem tornando quase fabulares seu otimismo exagerado e a insensatez de suas ações, ao mesmo tempo em que enfatiza a profundidade de sua lucidez. O desespero da protagonista, que em algumas montagens parece acessível apenas para o público, se manifesta claramente consciente em cena. No palco, Winnie detém a percepção de seu destino trágico, e isso torna sua condição tão absurda quanto a do homem contemporâneo, o qual ao menos coletivamente sabe direitinho para onde caminha a humanidade, e pouco ou nada faz a respeito.

Cesar Ribeiro fundamenta sua encenação justamente na invasão do absurdo no dia a dia da humanidade, como fez em sua primeira incursão beckettiana, Esperando Godot, em 2017. Apoia-se nos mesmos conceitos em Dias Felizes, enfatizando os tons de irrealidade no conteúdo e na forma da obra, mais uma vez inspirado no expressionismo e na linguagem de HQ. Winnie surge com a face coberta por uma maquiagem estilizada em branco e preto, localizada em algum lugar entre as máscaras de Butô dos dançarinos da cia. japonesa Sankai Juku e de personagens de anime, além do figurino criado por Telumi Hellen que mistura traços elisabetanos e futuristas.

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Cena de
(Bob Sousa/arquivo)

Os princípios do cyberpunk e do steampunk, visual da industrial dance e moda futurista também são evocados para compor o território devastado de Winnie e de seu marido, representado na cenografia de J. C. Serroni por um vulcão carbonizado e por um sol-relógio impiedoso que além de queimar como o sol do deserto, também acorda sistematicamente a protagonista de possíveis sonhos com alarmes estridentes que inauguram dias de um ciclo aparentemente interminável de afazeres desprovidos de sentido.

Dias Felizes e Esperando Godot são os grandes exemplos do pessimismo de Beckett. Ao lado de As cadeiras, de Ionesco, marcam também o nascimento do Teatro do Absurdo, exercício de linguagem que, em contraposição com a realidade despropositada do homem contemporâneo, parece ser cada vez menos um retrato ficcional, como se o absurdo tivesse sido normatizado pela humanidade de hoje.

Cena de
(João Maria Silva Júnior/arquivo)

Se Esperando Godot, escrita em 1949, faz um retrato da falência da civilização a partir da desesperança do pós-guerra, Dias Felizes aborda a mesma temática sob o ponto de vista de um mundo estabelecido. O primeiro alardeou o perigo da decadência da civilização. O segundo é, de certa maneira, o testamento de Beckett para a humanidade.

Winnie representa, desse modo, o auge da doença, loucura, falta de integridade, subjetividade e criatividade do homem contemporâneo. E da solidão, sobretudo da solidão. Ao mesmo tempo em que reflete sobre a precariedade de sua condição, ela engana sua mente com esquecimentos e memórias dúbias, agarrada ao fato de que ao menos não está sozinha. Enquanto isso seu marido Willie (Hélio Cícero) permanece indiferente, ao fundo da cena, alheio `a esposa e também ao domínio da linguagem, lendo manchetes de jornal. Detém a mídia mas perdeu a capacidade de se comunicar. Quando não fala palavras incompreensíveis ou grunhe, ressalta suas faltas com frases soltas e desconexas, dorme ou rasteja. Já não é um homem, tampouco é animal. É uma aberração produzida pelo processo civilizatório, um híbrido entre homem e máquina na concepção de Cesar, sem razão de ser tanto como um como quanto outro.

Cena de
(Bob Sousa/arquivo)

A abordagem feminista da obra é evidente. Não há esperança à sociedade patriarcal simbollizada por Willie. Para Winnie a situação não é muito mais animadora. Segundo a lógica da passagem do tempo, que engoliu inicialmente suas pernas e depois o corpo todo do pescoço para baixo, sua existência está no fim. Além disso, ela já não possui mobilidade. Ela já não possui interlocutor. O que lhe resta é a linguagem. A linguagem e uma arma. São as duas saídas possíveis, aponta Beckett, ou pelo menos eram quando a personagem podia contar com seus braços. E agora? O que fazer com o tempo que ainda resta?

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