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O renascimento das Ayabass

Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França retomam o projeto que nasceu em 2019, que reverencia cantoras do axé baiano

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 24 abr 2024, 17h10 - Publicado em 14 mar 2024, 11h00

Apostar num trabalho em grupo pode, às vezes, ser um tiro no escuro. Tradicionalmente, muitos artistas iniciam suas carreiras ao lado de grandes bandas antes de tomarem um rumo mais solitário. O caminho inverso é cada vez mais raro, mas não significa que ele não aconteça.

Em 2019, Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França decidiram se reunir para um projeto, sem ambições de torná-lo permanente. Seria um projeto paralelo às suas carreiras individuais, que estavam perto do auge naquela circunstância. Foi então que nasceu as Ayabass. O conceito estava bem definido: seriam três cantoras baianas que iriam reverenciar vozes femininas e negras do axé da Bahia, como Marcia Short, Alobened, Margareth Menezes e Virgínia Rodrigues. O nome, idealizado por Larissa, faz alusão às Yabás, os orixás femininos.

O objetivo do trio era tocar no verão, na Bahia. Logo em seguida, a pandemia virou o mundo de cabeça para baixo, e as três integrantes seguiram focadas em suas carreiras.

Levaria cinco anos para que o reencontro das Ayabass voltasse a acontecer, com muitas mudanças, diga-se de passagem. Em fevereiro, o grupo anunciou a volta e a participação em alguns festivais. O renascimento se deu em 24 de fevereiro no Viva Verão, em Salvador, de uma forma muito gostosa, elas contam. “Após nos desenvolvermos e amadurecermos como pessoas e artistas, esse projeto começou a fazer sentido”, conta Xênia França em entrevista à Bravo!. Havia, primordialmente, uma mudança de propósito daqueles tempos para cá. Agora, elas querem se divertir juntas e celebrar suas carreiras e momentos de vida.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

No começo do ano, Luedji e Xênia lançaram a canção de abertura da novela “Renascer”, da TV Globo, “Lua soberana” (composição de Ivan Lins e Vitor Martins). Em maio, as três participam do line-up do Festival Doce Maravilha, que acontecerá no Rio de Janeiro. Elas também subirão ao palco da novíssima edição do evento, que ocorrerá em Curitiba, em junho. No repertório, as cantoras incluíram obras de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Leci Brandão e Dorival Caymmi. À Bravo!, as três artistas falaram sobre este novo momento. Confira:

Ayabass nasceu de uma vontade sua, Larissa? O que estava acontecendo naquele momento que fez com que você tivesse esse desejo?

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Larissa Luz: Sempre quis destacar as mulheres, as vozes negras da Bahia. Fui vocalista do Ara Ketu anos atrás e desde então, percebi o quanto isso é uma questão importante: as vozes femininas dentro da Bahia e seu papel na música baiana. Minha experiência no Ara Ketu ampliou minha visão sobre tudo que envolvia esse meio. Isso ficou em mim, e comecei a pensar em como poderia abordar isso em algum projeto. Para mim, só faria sentido se fossem três cantoras juntas, representando o coletivo das vozes femininas negras. Decidi fazer uma releitura de cantoras que tivessem autoridade, que tivessem feito muito sucesso na música baiana, mas que, por diversos motivos, não estavam tendo a visibilidade e o espaço que mereciam.

Então, Luedji e Xênia foram me assistir no show da Elza (Larissa Luz interpretou Elza Soares no musical “Elza – O musical” e realizou a turnê “Elza Tributo”, ao lado de Caio Prado), e demonstraram interesse em fazer algo juntas. Eu falei sobre o meu projeto para elas, sentamos, conversamos e tornamos isso uma realidade. Num primeiro momento, eu assumi a direção artística e propus o repertório. Convidei algumas mulheres para formarmos uma banda totalmente feminina e levantar essa pauta de uma forma positiva, não apenas como uma crítica, mas como uma confirmação de que nossas vozes existem e que estamos moldando uma história e construindo um destino diferente.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

Vocês já se conheciam?
Larissa: Sim, a Luedji estudava em uma escola próxima à minha. Nós nos conhecemos desde muito jovens. A Xênia, eu já conhecia da época do Aláfia. Eu sempre dizia para ela que deveria seguir carreira solo. Essa mulher é muito talentosa. Então, a convidei para um show em Salvador. A Luedji também estava começando a se destacar na música. Cantamos juntas no Vila Velha, em um teatro icônico de Salvador.

Foi uma coincidência muito feliz esse encontro. Houve também um momento em que Luedji e a Xênia tiveram um encontro em Brasília e ali surgiu a vontade de fazer um projeto juntas, certo? Como isso se desdobrou?
Luedji Luna: A Larissa sempre foi uma artista desde adolescente. Eu já acompanhava a carreira da Xênia desde Salvador. Quando vim para São Paulo, ia aos shows e comecei a circular nesse circuito alternativo, onde nos encontrávamos frequentemente. Efetivamente, nos conhecemos em Salvador, em um show do Aláfia. Depois disso, participamos de vários projetos juntas. Em Brasília, manifestamos o desejo de fazer algo juntas. A Larissa estava em alta, comentamos sobre o trabalho de Elza. Era uma admiração mútua. Em um almoço, em São Paulo, decidimos fazer o projeto juntas, o Ayabass. Tivemos a oportunidade de trabalhar no verão de Salvador. O primeiro festival que fizemos foi o Sangue Novo, no pré-carnaval. Depois, fizemos um trio elétrico. Eu me lancei no carnaval de Salvador com as Ayabass. Depois disso, nunca mais parei. Inclusive, passei a gostar do carnaval de Salvador e me tornei uma entusiasta dessa festa após essa experiência.

Antigamente, eu não curtia o carnaval, preferia ficar em casa assistindo pela TV. Foi uma mudança de chave tanto para minha carreira quanto pessoalmente.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

O objetivo de vocês mudou de 2019 para cá? Qual é a perspectiva de vocês agora?
Xênia França: Desde que nos juntamos, percebemos um grande potencial. Essa conexão, esse desejo de criar algo juntas, acredito que era uma demanda até espiritual. Desde o momento em que nos unimos, a comoção que gerou esse encontro, a resposta do público nos shows, tudo foi muito natural, sem muito esforço. No meio disso, surgiu a pandemia e cada uma teve seus projetos individuais. Fazer um disco é como erguer uma casa, demanda 100% de foco. Você precisa estar muito bem consigo mesma. Há artistas que conseguem realizar vários projetos simultaneamente, mas não é o meu caso. Após nos desenvolvermos, amadurecermos como pessoas e artistas, esse projeto começou a fazer sentido. Luedji recebeu uma proposta para se apresentar no carnaval de São Paulo e sentiu que deveria compartilhar conosco para fazermos como Ayabass.

Tivemos uma conversa honesta e tudo se encaixou. Este é um projeto paralelo. Cada uma tem sua linguagem individual de trabalho, mas quando nos juntamos, criamos algo diferente. O projeto é um manifesto e tem um grande potencial de mobilização.

Faz sentido fazê-lo agora porque nos sentimos mais seguras do que quando começamos. Havia certa ingenuidade de nossa parte, não sabíamos ao certo o que esperar, surgiram demandas e situações para as quais não estávamos psicologicamente preparadas. Agora, algumas peças no tabuleiro foram movimentadas elegantemente. É um projeto de celebração.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

Como foi essa primeira conversa franca que tiveram? O que foi discutido?
Xênia: Uma das nossas maiores preocupações era o estado sensível em que estávamos naquele momento. Ficou muito fácil para o mercado nos enxergar como um produto único, três cantoras ascendentes. Até então, nunca tínhamos sido escaladas juntas em festivais. Nunca estivemos as três no mesmo evento. Então, em determinado festival, nos propuseram a Ayabass por um valor absurdo, que não fazia sentido algum. Temos plena consciência de quem somos e do valor de nosso trabalho. Por isso, entramos em um processo de autoproteção, percebemos que estávamos subestimando algo muito valioso, tanto o nosso trabalho individual quanto o coletivo.

Eu já havia participado de uma banda e sei o quanto de energia é consumido. Naquela época, queria investir em meu trabalho individual. Agora é diferente, lançamos nossos trabalhos individuais, nos cuidamos, cuidamos de nossas mentes, de nossos oris.

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Somos muito diferentes entre nós, então encontrar uma ressonância para investir em um projeto coletivo é algo que precisa ser pensado e discutido.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

Você falou sobre serem diferentes. Como vocês são diferentes e parecidas?
Luedji: Nossas personalidades são completamente diferentes. Isso ficou evidente desde nossa primeira conversa. A Lari é taurina. Desculpe, mas vou ter que mencionar os signos. Ela é super workaholic, muito focada e leva o trabalho muito a sério. Ela é uma líder natural. Desde o início, ela escreveu o projeto, assumiu a direção artística, a produção musical e também cantava. Eu tenho lua em touro, apesar de ser geminiana. Às vezes, me identifico com essa personalidade, penso muito na minha carreira, cuidei da minha própria carreira por muitos anos, escrevo meus próprios projetos e assino a produção dos meus discos.

Xênia é pisciana, ela é muito mais voltada para o mundo etéreo, da imaginação. Ela gosta muito de pesquisa interna e espiritual, algo com o qual também me identifico. Já tive um período na minha vida em que era extremamente ligada ao espiritual, praticava ioga, reiki, meditação, me envolvia com sonhos. É engraçado que tenho um pouco das duas.

Larissa: Quando pensava em nós, pensava que o que nos unia era o fato de sermos baianas e termos saído de nossas cidades para correr atrás de nossos sonhos. O fato de gerenciarmos nossas carreiras, termos começado sem ninguém nos dizer como fazer. Construímos nossos próprios caminhos. Apesar de termos idades diferentes, somos da mesma geração, reconhecemos as mesmas referências e temos uma relação com a palavra, reflexão e escrita. Luedji também escreve, Xênia desenvolve sua expressão na fala e na reflexão filosófica.

A principal diferença é que sou mais 220. Mas na música, todas estamos no mesmo nível de intensidade.

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Xênia: Acredito que tenhamos ritmos e energias diferentes. Estou há 20 anos em São Paulo e não teria conseguido desenvolver minha carreira sendo apenas uma sonhadora. Sou uma pessoa que sonha e realiza, mas trabalho em um ritmo diferente. Sou muito responsável com meu trabalho, as coisas precisam ter propósito e sentido para mim. Se não fizerem, não me envolvo, por mais atrativas que pareçam. Cuido muito da minha imagem e escolhas musicais. Para trabalhar em equipe, é necessário baixar algumas barreiras e entrar no universo do outro. Quando é um trabalho individual, levo mais tempo para compor minhas músicas, porque estou sempre refletindo sobre o que está ao meu redor. Para me conectar com outras pessoas, é preciso deixar as armas de lado, senão vira uma competição. E esse não é o objetivo aqui, pelo contrário. Estamos tentando celebrar nossas existências.

De todas as coisas que mencionaram em comum e diferentes, as diferenças de subjetividade são as mais marcantes. Eu oscilo muito, é um desafio para as pessoas lidarem comigo.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

Tem um ponto de conexão que parece ser a religião. Isso está na escolha do nome de vocês. Como é a ligação que cada uma tem com o aspecto espiritual?
Larissa: A princípio, pensei em fazer uma referência à Bass culture, a cultura do grave. Fazíamos todas as nossas músicas num beat eletrônico, isso fazia parte do conceito. Mas também fazia alusão às Yabás, às mulheres do candomblé. Depois fomos mudando o conceito do som, mas os arquétipos femininos, o imaginário do candomblé permaneceram.

Luedji: Nós todas somos do candomblé. E o nome Ayabass é um trocadilho, referente aos orixás femininos, as Yabás. Não, necessariamente, carregamos isso. Eu sou a única que não carrega. Sou iniciada no candomblé e cultuo o Vodum, originário de outro território da África, que não é Ketu nem Iorubá. Meu orixá não é feminino, mas fazia sentido dentro do contexto do projeto, que visava homenagear mulheres negras baianas do axé e trazer esses arquétipos como referência.

Hoje em dia, muitas coisas aconteceram em nossas vidas e carreiras, e trouxemos um terceiro elemento, que é o Fejuca (Julio Fejuca, vencedor de três Grammys latinos), uma figura que todos conheciam e curtiam o trabalho. Então concordamos.

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Xênia: Eu tenho uma relação menos mítica e folclórica. Acho que conduzimos tudo muito bem, mas foi um cuidado para não cairmos na armadilha de folclorizar algo que, para nós, é muito sério e faz parte de nossa intimidade. Nós fazemos parte de uma religião conhecida como a religião dos segredos, dos mistérios. Por muitas questões, os personagens são muito populares, estão relacionados às entidades de outras religiões, da religião católica, especificamente. Nós não nos opomos ao nome, mas nosso comportamento em relação a isso, no palco, no trabalho, é muito sério. Particularmente, sou devota do candomblé, mas também flerto com muitas linguagens espirituais. Sou muito mais espiritual do que o candomblé, porque gosto de aprender outras linguagens espirituais. Estou constantemente me pesquisando e tentando entender como ser neste mundo. Então, encontro respostas em outras linguagens também. Não queríamos reforçar uma visão estereotipada do que precisa ser exaltado. É um nome forte, faz alusão às entidades femininas, mas preferimos ter uma postura cuidadosa e responsável em relação aos orixás e à religião de matriz africana.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)

O que vocês trouxeram de referências musicais e estéticas?
Xênia: Acho que mudou muito depois que mudamos a banda. Trouxemos outra linguagem. Acho que a música brasileira mais setentista, a escolha do tamanho da banda, quais seriam os instrumentos, coisas bem referentes ao que o Brasil se propõe há alguns anos, de música tocada. Mesmo que façamos uso do bass, e respeitando a identidade de cada uma, a ideia de trazer a banda seria mais justa do que fazer a maior parte do show de forma eletrônica. Por exemplo, minhas músicas são gravadas com instrumentos reais, cheias de acordes, com variações rítmicas, com superposições rítmicas, que, naturalmente, gostaria que fossem apresentadas do jeito que foram concebidas. Escolhemos músicas que gostamos e que são muito ricas musicalmente. Então fazia sentido ter uma super banda para transmitir essa essência.

Vocês sentiram que teve uma mudança no cenário musical desde que começaram até agora?
Luedji: Mudou. Nós crescemos individualmente, nos consolidamos e fomos reconhecidas nacional e internacionalmente. Nosso valor individual e pessoal mudou, e isso reverbera no valor coletivo. Tivemos contratações interessantes que valorizaram a história de cada uma. Isso foi importante para toparmos retornar, com condições de bancar uma superestrutura, uma produção. O mercado está mudando aos poucos. Não digo que é um cenário ideal para cantoras negras. Comparado a 2019, percebo que aumentou a demanda das mídias, por entrevistas, curiosidade em torno deste projeto. Apesar do fantasma do ostracismo que paira sobre a carreira de artistas negras, e apesar de todas as mudanças do mercado no que tange à dinâmica da internet, o pós-pandemia, conseguimos nos estabelecer apenas fazendo música e entregando excelência. Estou feliz com as propostas que surgiram.

Xênia: Acredito que a mudança também acontece pelo movimento de nos juntarmos e dizermos: vamos fazer de novo. Quando nos juntamos, acho que o sistema tem um pouco de medo de motim. Assim como existe a memória ancestral negativa, tem a memória ancestral positiva. Acho que estamos nos valendo dessa última, daqueles que se juntam pelo bem maior. A nossa premissa primordial é a celebração. Queremos nos divertir.

Quando anunciaram o retorno em 2024, vocês mencionaram uma “mudança de narrativa das mulheres pretas dentro da música”. Poderiam falar um pouco mais sobre que narrativa é essa? Ela tem a ver com o combate ao ostracismo que mencionaram há pouco?
Xênia: Acho que não é combate a nada. Agora, queremos evitar o combate. Pensando que combater é você se identificar com o que a pessoa pensa de você, de ter que se defender disso. Quem está escrevendo as nossas narrativas agora somos nós, não somos objetos de estudo – nunca fomos. Mas estamos nos autorizando a escrever nossas próprias histórias individualmente e, ao nos juntarmos, estamos apenas nos divertindo, comemorando que, apesar de tudo que acontece lá fora, que não depende de mim. Como James Baldwin fala que o racismo não foi inventado pelos negros, logo não somos nós que devemos nos defender, combater, construir. Nosso tempo é roubado todas as vezes que estamos combatendo. Quando estamos combatendo, não estamos compondo, criando. É um projeto de existir. Por isso, quando deixamos de lado, as coisas acontecem. Tudo é energia; quando estamos na energia da luta, tudo vira uma luta, quando estamos na energia da comemoração, tudo vira motivo para celebrar.

Luedji: Concordo com o que a Xênia disse. Talvez você tenha tido essa impressão a partir do primeiro momento da Ayabass, que de fato tinha essa disputa de narrativas com a indústria específica, que é do axé baiano. Que é uma indústria que, apesar de ser de uma cidade em que 80% da população é negra, as grandes divas do axé não eram negras. Tinha uma conotação de denúncia, de resgate de nomes que caíram no ostracismo. Isso foi em 2019. Agora, queremos nos humanizar, porque se entramos nesse vórtice da luta, do combate, nós perdemos o lugar que o racismo já nos tirou. Nossa individualidade é atravessada pelo racismo, sim, mas não só. Então queremos fugir desse estereótipo, quase dessa obrigação imputada às pessoas negras de viverem em função de uma estrutura que não foi criada por nós.

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(Lucas Cordeiro/divulgação)
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