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Nara Leão e a história de uma das intérpretes mais ousadas da Bossa Nova

Coleção Bravo! Especial - Bossa Nova: conheça a trajetória da musa do gênero musical, que foi símbolo de resistência dentro da indústria fonográfica

Por Redação Bravo!
Atualizado em 26 jan 2024, 14h16 - Publicado em 25 jan 2024, 10h16

Nara Leão foi considerada a grande musa da Bossa Nova, título que, aliás, passou a vida recusando. Tinha de 14 para 15 anos quando o apartamento de seus pais, na Avenida Atlântica, em Copacabana, virou ponto de encontro dos amigos – todos mais velhos que ela – que passavam as noites tocando violão, compondo e conversando sobre música. Sylvia Teles, Roberto Menescal, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli eram alguns dos frequentadores mais assíduos das famosas reuniões, pelas quais passaram também ícones do novo estilo, como Tom Jobim e João Gilberto. Tudo isso quando a Bossa Nova começava a nascer.

Mas Nara Leão não foi musa apenas do movimento que marcou a música brasileira e mundial. Foi musa da música de protesto, da tropicália e até mesmo da jovem guarda. E essa é uma das características mais marcantes da intérprete que passou 20 anos cantando como contralto quando era, na verdade, soprano: a de não se prender a formato algum. Em 1966, inclusive, Nara chegou a romper publicamente com a Bossa Nova, período que coincidiu com o fim traumático do noivado com Ronaldo Bôscoli. Alguma relação? Há quem diga que sim, há quem diga que não.

Nara Leão tocando violão, 1988.
Nara Leão tocando violão, 1988. Foto por: Ricardo Chvaicer (Ricardo Chvaicer/divulgação)

O fato é que Nara Leão foi uma das grandes mulheres do cenário artístico nacional. Fez o que quis de sua vida, da maneira que quis, com ferrenha dedicação em tudo. Deixou a carreira de lado para se dedicar à maternidade, escolheu seus relacionamentos a dedo, fez todos os discos que teve vontade, mesmo indo contra a corrente, lançou moda, atacou a ditadura, estudou psicologia.

Cantou Bossa Nova, samba, cantigas de roda, chorinho, música popular, americana, música de seresta, protesto e até música dançante. Lutou como pôde por sua independência, pelos seus ideais e pela vida, a única batalha que não conseguiu vencer, vencida por um câncer, em 1989.

A Garota de Copacabana: tímida e aplicada

Paulo Gentileza estava na sala quando ouviu o barulho. Encontrou Nara no chão do banheiro, desacordada, machucada pelo tombo. O ano era 1979 e aquele, o primeiro dos muitos desmaios que viriam pela frente, o primeiro dia dos últimos dez anos de sua vida. A vida da mulher que marcou a música brasileira e, em particular, a Bossa Nova.

No entanto, tudo isso ainda era distante para a menina que todos os dias seguia a pé de Copacabana, onde morava, ao Colégio Melo e Souza, em Ipanema. Usava o básico uniforme azul e branco – saia, camisa e gravata – e ia acompanhada de uma amiga. No caminho, cruzava com um menino um pouco mais velho, que estudava na unidade do Melo e Souza em Copacabana. Certa manhã, o rapaz interrompeu Nara em seu trajeto e perguntou:

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– Oi, tudo bem? Você me conhece?

Nara disse que não e, apesar do inevitável constrangimento, ele fez o convite:

– Meu nome é Roberto Menescal. Vou fazer 15 anos e quero convidar você e sua amiga para o meu aniversário no sábado.

“Dei o endereço a elas, mas achei que não fossem aparecer. Lá pelas tantas, tocou a campainha. Nara estava irreconhecível, de vestido preto e salto alto”, conta Menescal, que dançou diversas vezes com a nova amiga, até ser pego de surpresa pela idade da garota: ela tinha 11 anos. E onde estavam os pais de uma menina tão jovem, vestida como adulta, em uma festa de adolescentes? Em casa, sem se preocupar com aquilo.

Os pais de Nara Leão eram liberais. O pai, o engenheiro dr. Jairo Leão, queria que as filhas fossem independentes e não se importava com detalhes como diploma, horário nem outras preocupações comuns à classe média de seu tempo. A mãe, dona Tinoca, não dava maiores palpites. Eventos como aniversários, Natais e Réveillons tampouco eram comemorados em família.

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Aos 8 anos, por exemplo, Nara tinha consciência de que seus pais seriam mais felizes se vivessem separados. Aos 12, sofria com complexos e dilemas existenciais. Afinal, não era fácil ser irmã da exuberante Danuza Leão. Primeira modelo brasileira a ganhar projeção internacional, Danuza era linda, extrovertida e famosa. Embora tivesse saído de casa aos 16 anos, quando Nara tinha apenas 7, a amplitude de Danuza nunca abandonou a irmã caçula.

Danuza Leão, à direita, com a irmã, Nara Leão, e uma amiga.
Danuza Leão, à direita, com a irmã, Nara Leão, e uma amiga. Foto: Arquivo pessoal. (divulgação/divulgação)

“Eu era quieta, tímida e me considerava muito feia. E o que é pior: era irmã de mulher bonita”, confessou Nara em uma das inúmeras entrevistas concedidas ao longo dos anos. A menina, então, agarrava-se ao que estava ao seu alcance: os estudos e as atividades extras, como a dança e a gravura. Fazia tudo com extrema dedicação.

Ao ser questionada sobre como era a irmã na infância, Danuza não hesitou: “Era muito quieta e aplicada”. E assim continuaria a ser por toda a vida.

O apartamento da Avenida Atlântica

Nara Leão nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 19 de janeiro de 1942. Capixaba de nascimento, carioca de coração. Tinha 1 ano quando seus pais se mudaram para o Rio de Janeiro. Moraram na Avenida Nossa Senhora de Copacabana antes de se transferirem para o número 303 do Edifício Louvre, um dos três que compunham o Conjunto Champs-Élysées, na Avenida Atlântica. Esse segundo apartamento passou pela história como berço da Bossa Nova. Afirmação rebatida por Nara, que rechaçou também a de ser a musa do movimento. “A Bossa Nova não nasceu nem poderia nascer na casa de ninguém. (…) E eu fui antes a muda que a musa da Bossa Nova”, dizia, não sem razão.

O certo é que antes mesmo de se mudar para o famoso apartamento, descobriu a música. “Numas férias, eu fui para Cabo Frio e Nara para Campos do Jordão. Quando voltamos, tanto eu quanto ela havíamos tido o primeiro contato com o violão. Na volta, decidimos aprender a tocar o instrumento”, recorda Menescal. Dr. Jairo contratou Patrício Teixeira para dar aulas à filha, em casa. O amigo inseparável, Menescal, estava sempre por perto e acabou aprendendo também. Tomou gosto pela coisa e, um tempo depois, abriu uma academia de violão com Carlos Lyra.

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Nara chegou a ser professora na escola, que se tornou point da moçada da zona sul carioca, sobretudo do público feminino. “Muitas meninas se matriculavam só para frequentar a escola e ver os músicos”, conta Menescal. Essa época foi contemporânea das famosas reuniões no apartamento da Avenida Atlântica. Reunião é palavra muito formal. Roda de violão é o termo apropriado. A turma se encontrava para tocar, cantar, mostrar músicas, trocar ideia sobre a nova forma de fazer música que estava surgindo, algo mais intimista, contrário à opulência dos boleros.

Nara Leão com Roberto Menescal.
Nara Leão com Roberto Menescal. Foto por: Claudio Dantas (Claudio Dantas/divulgação)

Como os pais de Nara não se incomodavam, o apartamento foi escalado como o principal ponto de encontro. A única exigência era esperarem terminar o jogo de pôquer do dr. Jairo, às quartas-feiras, que contava com adeptos como Millôr Fernandes. No mais, a casa estava à disposição, mesmo porque se tratava de uma turma comportada. “Nara e seus amigos se reuniam quase todo dia. Eu morava fora e ia pouco lá, mas lembro de que não bebiam uma gota de álcool, tomavam Coca-Cola e faziam macarronada no fim da noite”, recorda Danuza, acrescentando que, certa manhã, dona Tinoca se deparou com um piano no meio da sala. Como haviam colocado o instrumento ali, ninguém nunca soube explicar.

João Gilberto e Tom Jobim apareciam vez ou outra. Mais João Gilberto que Tom. Aliás, foi lá onde João Gilberto conheceu Astrud Weinert, sua futura mulher. Essas poucas ocasiões eram um verdadeiro êxtase para o grupo, que permanecia em total silêncio a fim de absorver as harmonias, as batidas e as melodias dos mestres. Entre os frequentadores assíduos estavam Menescal, Carlos Lyra, Sylvia Teles e o jornalista Ronaldo Bôscoli que contava 28 anos quando Nara, aos 15, abriu-lhe a porta do apartamento. O namoro começou logo e não tardou a virar noivado, numa história que teria fim traumático quatro anos depois.

Naquele momento, entretanto, tudo era alegria. Quase tudo. Nara não cantava. Além do empecilho natural da timidez, os amigos não lhe davam crédito como cantora. Fosse nas rodas de violão ou nos primeiros shows, quando nem sequer lhes passava pela cabeça incluí-la para cantar. Daí, a própria Nara se considerar a “muda” da Bossa Nova. Nem por isso seu papel era menos importante. Com excelente memória, sabia todas as músicas e as letras de cor, fazia as anotações, dava palpites nas melodias, nos arranjos, ajudava a selecionar o repertório. E tudo com a máxima dedicação, claro.

Época de mudanças: o fator Bôscoli

O ano de 1958 foi marcado por acontecimentos importantes. Nara arrumou seu primeiro emprego, no Última Hora, jornal do cunhado, Samuel Weiner. O trabalho não durou muito tempo, mas o suficiente para escrever alguns horóscopos, matérias, fazer entrevistas e ampliar seu círculo de amizades na imprensa.

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Um desses novos amigos, o editor Moisés Fuks, ficou impressionado com o que ouviu no apartamento de Nara e convidou a turma para uma apresentação no Grupo Universitário Hebraico do Brasil. Não sabendo o nome do conjunto, Fuks mandou fazer os cartazes com a descrição “Sylvia Teles e um grupo Bossa Nova”, destacando o nome da cantora, a única conhecida. Foi a primeira vez que a expressão apareceu, ganhando realmente repercussão no disco 78 rotações de João Gilberto, lançado no mesmo ano, com a gravação de Desafinado, de Tom Jobim e Nilton Mendonça. “Isso é Bossa Nova/ isso é muito natural”…

A partir daí, a patota da Avenida Atlântica começou a fazer pequenas aparições na cena musical. Nara sempre junto, mas sempre de fora. Até o show na Pontifícia Universidade Católica do Rio, em 1959, promovido com o apoio da gravadora Odeon, de olho no novo potencial do nome e do movimento Bossa Nova.

Sem dar qualquer aviso prévio, Sylvia Teles apresentou aos presentes uma nova cantora. Nara tentou fugir, mas não houve tempo. Subiu e cantou três músicas de costas para o público, segurando o choro. Foi muito aplaudida e isso, talvez, lhe deu coragem para se arriscar outras vezes.

Nara Leão com Silvio Caldas e Carlos Lira.
Nara Leão com Silvio Caldas e Carlos Lira. Por: Rolando Carneiro – 1963 (Rolando Carneiro/divulgação)

No meio jornalístico, nas gravadoras, nos círculos sociais, a cada dia a Bossa Nova ganhava mais força. Nara e seus amigos eram convidados para apresentações aqui e acolá, embora ela continuasse a participar pouco quando o assunto era palco. Todo mundo queria o seu quinhão de Bossa Nova. A fim de revigorar a carreira, a cantora popular Maysa contratou Ronaldo Bôscoli para fazer a direção de uma série de shows na Argentina, que teve ainda Roberto Menescal como violonista.

Ronaldo e Maysa tiveram um caso na temporada, que o galã julgava encerrado ao desembarcarem no Rio de Janeiro. No entanto, Maysa havia lhe preparado uma pequena surpresa: convocou a imprensa e anunciou: “Vou me casar com Ronaldo Bôscoli”.

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Nara ficou sabendo da história no dia seguinte, pelos jornais. O baque foi tão grande que ela demorou anos e anos para superar o trauma. Depois de sumir por alguns dias e tentar a aproximação por amigos, Bôscoli tentou o telefone.

– Nara, aqui quem fala é o Ronaldo Bôscoli.

– Quem é Ronaldo Bôscoli? – perguntou e desligou o aparelho.

Para Roberto Menescal, o fim do romance teve enorme contribuição no rompimento de Nara com a Bossa Nova. “Ela se afastou da gente e começou a andar com outra turma, que tinha o Zé Kéti, o Nelson Cavaquinho…”, afirma. Mas o fato é que foi mais do que isso.

Uma mulher de opinião

Quanto mais Nara saía de casa para shows e eventos musicais, mais ela conhecia novas pessoas e outros tipos de música. Nessa época, o amigo Carlos Lyra foi figura fundamental. Ligado ao Partido Comunista, Lyra foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura no Rio de Janeiro. Acreditava na conscientização pela música e passou a trabalhar para isso.

Por intermédio dele, Nara estreitou os laços com o poeta Vinicius de Moraes e com o músico Sérgio Ricardo. Conheceu ainda um quarteto que seria importantíssimo nos anos seguintes de sua vida: o diretor de teatro Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, e os músicos Nelson do Cavaquinho, Cartola e Zé Kéti. Ficou fascinada pela música como instrumento de denúncia social e protesto. E não pensou duas vezes em aceitar o convite de Vinicius e Lyra para cantar com eles na peça politizada Pobre Menina Rica, de autoria de ambos. Segundo a própria Nara, o espetáculo marcou a sua estreia como cantora profissional, em 1963.

Nara Leão, cantora
Nara Leão, cantora. Foto por: Adhemar Veneziano – 1968 (Adhemar Veneziano/divulgação)

Uma estreia bem-sucedida. O reconhecimento veio de toda parte, da crítica, dos outros músicos e do público. O produtor Aloysio de Oliveira, ex-diretor da Odeon, havia montado a gravadora Elenco e propôs a Nara gravar seu primeiro disco.

A proposta foi aceita e, em agosto de 1963, entrou no Estúdio Rio-Som, no centro do Rio de Janeiro, para gravar seu primeiro LP. Tinha completos 21 anos e o repertório escolhido por ela não agradou Aloysio. Ele queria Bossa Nova, afinal Nara já era aclamada a musa do novo estilo.

Ela foi firme e manteve sua seleção, com músicas do trio Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, e outras de nomes como Edu Lobo, Rui Guerra (com quem manteve um breve namoro), Carlos Lyra, Baden Powell, Vinicius de Moraes e Gianfrancesco Guarnieri. O LP Nara foi considerado o primeiro do que viria a ser a MPB e mostrou uma característica da cantora que a acompanharia até o fim de seus dias: a vocação para lançar tendências, antecipar-se a elas, buscar novidades, sem se prender a nada.

O disco fez sucesso, vendeu bem e elevou Nara ao posto de uma das cantoras de maior destaque de 1964. Não faltavam elogios a seu jeito simples e doce de cantar. Por outro lado, também havia quem a tivesse como desafinada, entre outros atributos depreciativos. Ela própria levaria ainda anos para enxergar-se como boa intérprete.

As preocupações de Nara com as questões políticas e sociais aumentaram com o golpe militar de 31 de março de 1964. E, na mesma proporção em que se envolvia com a música politizada, distanciava-se da Bossa Nova. Em outubro do mesmo ano, Nara defendeu sua posição em uma entrevista à revista Fatos&Fotos: “Chega de Bossa Nova. (…) Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento (…). A Bossa Nova me dá sono”. Foi o basta em sua relação com o movimento.

Na mesma ocasião, começou a viajar pelo Brasil, com direito a algumas incursões pelo exterior. Em uma viagem a Salvador, conheceu Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ficou impressionada com o trabalho deles, principalmente com a interpretação forte de Bethânia.

 

Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nara Leão reunidos
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nara Leão reunidos. Foto por: Paulo Salomão (Paulo Salomão/divulgação)

Em novembro do mesmo ano, lançou seu segundo LP pela Philips, intitulado Opinião de Nara. O álbum trazia a mesma mistura: sambas e composições modernas, incluindo na lista João do Vale. Outra vez, grande sucesso.

Ao ouvir o disco, Vianninha teve a ideia de montar um espetáculo com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Além de atores e cantores, os três seriam personagens, levando ao público a própria realidade. Coube a Nara, portanto, o papel da menina da zona sul que canta o samba.

Ideia, concepção, ensaio. Foi tudo muito rápido e, em 11 de dezembro de 1964, o lendário espetáculo Opinião estreou em um shopping na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. “Foi uma surpresa enorme pra mim. Até então eu tinha a imagem da Nara tímida e quieta que ela sempre foi. De repente, surge aquela explosão no palco, aquela força. Foi muito emocionante”, conta Danuza, presente na estreia.

Um mês depois, Nara perdeu a voz. Como substituta, indicou a cantora que havia conhecido em Salvador, Maria Bethânia. A participação de Nara no espetáculo, no entanto, ficou marcada na história da música popular brasileira e na da resistência à ditadura.

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