O humor inabalável de Mart’nália: aprendizados, carreira e mais
Cantora se apresenta em São Paulo, na Casa Natura Musical, com canções do último álbum "Sou Assim Até Mudar"
Você nunca ouvirá Mart’nália se queixando de ter pouco o que fazer. Na verdade, ela é uma fervorosa defensora do ócio e parece ansiar por ele durante suas temporadas de shows. “Sempre que posso, fico em casa sem fazer nada. Vou à praia para não fazer nada. Ou visito amigos e continuo não fazendo nada.” O “nada” é benquisto, já que raramente está presente durante sua rotina atribulada. Este ano, ela deu sequência à turnê de seu mais recente álbum, Sou Assim Até Mudar (2021), indo do Brasil até a Europa. “Foi uma turnê maravilhosa, passamos por nove países. O tempo estava bom e fez bastante calor, mas aqui é onde me sinto mais à vontade”, diz a sambista, sempre bem-humorada, em uma ensolarada tarde em sua casa no Rio de Janeiro, em entrevista por vídeo.
Este segundo semestre está um pouco mais tranquilo para a artista, com apresentações mais íntimas e uma rápida passagem por São Paulo, cidade que ela diz adorar. Neste final de semana, nos dias 20 e 21, ela se apresentará na Casa Natura Musical, em Pinheiros, na Zona Oeste da capital paulista. No repertório, além das novas canções, ela não abre mão dos clássicos “Cabide”, “Pra Que Chorar”, “Onde Anda Você”, “Namora Comigo”, “Chega” e “Entretanto”. “O público de São Paulo é muito corajoso, comparece com chuva ou sem ela, então precisamos nos entregar de verdade. Estou ansiosa para esse público incrível.” Após a passagem por São Paulo, ela prevê apresentações no Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador, Belo Horizonte e Ouro Preto.
Pé no samba desde pequena
Desde sua infância, Mart’nália Mendonça Ferreira teve o samba presente na rotina. No entanto, nem a música, nem sua ancestralidade eram debatidas em casa, embora não fossem assuntos estranhos ao pai, o cantor Martinho da Vila, que já abordou o racismo até mesmo na literatura, no livro Ópera Negra. O mesmo acontecia com a religião. Quando era mais jovem, foi influenciada por sua avó paterna, Teresa, “filha de escravizados”, ela enfatiza, em sua formação religiosa no catecismo. “Achava gostosinho, tudo bonito, mas não me interessava pela igreja.”
Conforme foi crescendo, sua avó permitiu que ela fizesse suas próprias escolhas, o catolicismo ficou para trás. Sua iniciação na Candomblé Ketu (originado na região de Queto, em Benim) ocorreu gradualmente, influenciando também a sua música. “Hoje em dia, o mundo está mais aberto a essas coisas. As pessoas estão se reconhecendo e se permitindo”, ela observa. “Caetano, Bethania e Gil sempre cantaram sobre os orixás, mas ninguém prestava atenção porque as pessoas não eram do lance.”
Embora faça parte de uma família de artistas, a música não entrou em sua vida de maneira impositiva. Além de seu pai ser um dos maiores sambistas do país, sua mãe, Anália Mendonça, foi uma cantora talentosa. “Foi o que sobrou para mim”, ela diz. A compreensão da importância das rodas de samba e dos artistas que as frequentavam, como Clara Nunes e João Donato, só aconteceu na adolescência. Antes disso, tudo parecia uma grande farra. Já cedo, aprendeu com Martinho a valorizar a liberdade. Martinho deixava a filha seguir o próprio caminho. “Meu pai sempre foi muito tranquilo, ele me criou de maneira livre, dizia: ‘Seja o que você quiser. Faça o que você quiser, na hora que quiser.'”
Pai e filha seguem o próprio ritmo com devoção ao samba. Às vezes, seus arranjos e compassos se cruzam, com harmonia, em shows conjuntos, como no projeto Em Samba! ao Vivo, de 2014. Em agosto passado, os dois se apresentaram em um show nas areias da praia de Copacabana, ao lado da Sinfônica Pop Arte Viva. Além do samba, a relação afetuosa entre os dois é também marcada por uma amizade e semelhanças. “Quando conheci a Bebel Gilberto, estávamos numa festa, muito loucas, ela chegou e perguntou assim para mim: ‘Você ainda fala com o seu pai?’ Acho que na época a família dela estava brigada. E eu falei ‘Claro, não tem tumulto na minha família’. Daí rimos muito, lembrando nossas histórias conjuntas.”
A caminhada musical de Mart’nália
A artista começou como backing vocal de seu pai, ao lado de seus irmãos. Pequena, aprendeu piano, quando ainda vivia no Grajaú (bairro periférico do Rio de Janeiro). Depois se tornou vocalista, fez parte do grupo Batacotô, foi percursionista e vocal da banda de Ivan Lins. E, em seguida, seguiu voo solo, fazendo apresentações em bares, casas noturnas e teatros do Rio de Janeiro. “Eu cantava fininho, mas com o tempo fui conhecendo minha voz. Com o Caetano, fui cantando mais grosso”, ela conta, mais uma vez, aos risos.
Sua carreira alavancou num processo paralelo à evolução da internet, no início dos anos 2000. Viu muitas transformações acontecerem, tanto no âmbito da música, quanto em questões sociais. “Acredito que as coisas estão melhorando. Hoje, o cara que sofre racismo pode ligar a câmera e gravar. Podemos denunciar, pelo menos. A internet está mostrando quem é quem. Tirando a parte ruim de tudo isso, estamos caminhando.”
Suas músicas ganharam notoriedade Brasil afora com o lançamento de “Pé do meu Samba” (2002), que teve produção artística de Caetano Veloso, e “Menino do Rio” (2006), produzido por Maria Bethania. Mais tarde, seu talento foi laureado com o Grammy Latino de Melhor Álbum de Samba em 2017 e 2019, respectivamente, por Misturado e Mart’nália canta Vinicius de Moraes.
Novo disco de Mart’nália
Enquanto se despede da turnê com os últimos shows de 2023, ela já se prepara para o próximo álbum da carreira, ainda sem nome, previsto para ser lançado no início do ano que vem. Nesse projeto, ela planeja uma investigação sobre os diferentes tipos de samba tocados nas várias regiões do país. Será um período de viagens. “Cada lugar tem sua própria interpretação do samba, com algumas diferenças. Alguns lugares têm a cuíca maior, outros destacam o pandeiro, enquanto em outros o pandeiro é tocado sem a platinela. Cada região tem sua forma única de vivenciar o samba. Quero realizar essa pesquisa e transmitir um pouco da verdade de cada local. Este será também um projeto audiovisual, mostrando os lugares que vou percorrer”, adianta ela, animada.
Para Mart’nália, o elemento essencial na música é a roda de samba. “A roda é o que segura o samba”, brinca ela. “Às vezes, nem é preciso de instrumentos, as pessoas batucam nas pernas ou na mesa. A roda mostra a simplicidade do samba e do povo. Você tem bebida, comida, amigos, família, crianças chorando, cachorro passando. Foi o samba que me fez”, entrega.
Em setembro passado, a cantora completou 58 anos. Já são 42 anos de carreira e ela não perde a chance de fazer brincadeiras sobre estar envelhecendo. “Difícil o bagulho. Dá uma travada nas costas. A preguiça fica pior. Tomar um porre fica mais difícil no dia seguinte. Eu costumava ficava três dias de boa, hoje não fico mais, fico dois e meio. O samba, que ia até às 8 horas da manhã, vai até às 6h. E o negócio de mulher tem um monte de detalhezinho, tem a menopausa. Com 58 anos, pode dar uma merda danada. Mas vou seguindo, tomando minha cervejinha”, diverte-se.
Ao se despedir, ela mostra o sol a pino pela janela da sala, celebrando seu amor pelo Rio de Janeiro e pelo ócio criativo.
Artur de Azevedo, 2134 – Pinheiros, São Paulo – SP
Dia 20 de outubro, sexta-feira, 22h | Abertura da Casa: 20h30
Dia 21 de outubro, sábado, 22h | Abertura da Casa: 20h30
Ingressos à venda pelo site da Sympla
Valores: de R$40 a R$270