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O legado de Alaíde Costa

Cantora celebra os 68 anos de carreira e dedicação à Bossa Nova com shows esgotados na Casa de Francisca e no Baretto, em São Paulo

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 1 nov 2023, 15h22 - Publicado em 31 out 2023, 11h16
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 (Murilo Alvesso/divulgação)
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Quem assiste Alaíde Costa interpretar emocionada uma canção no palco talvez não imagine que ali esteja uma artista carregada de timidez. Foi essa mesma característica que, muitos anos antes, quase a impediu de tentar uma carreira na música. Foram muitos apelos da família e de vizinhos, que insistiam que outros deveriam escutá-la cantar. Embora fosse quieta, sempre esteve a cantar. Uma vocação não herdada, mas que desde pequena se expressava com muita naturalidade. “Não passava pela minha cabeça que me tornaria cantora. As pessoas me levavam para cantar, eu mesma não me animava. Era muito tímida, ainda sou. Sou muito grata àqueles que me incentivaram”, revela ela em entrevista por telefone à Bravo!.

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Alaíde Costa faz balanço da carreira em entrevista à revista Bravo! (Murilo Alvesso/divulgação)

Teria recebido o conselho de uma chefe, numa casa onde trabalhou como babá, para arriscar cantar no programa do Ary Barroso. Decidiu se aventurar nesse e em tantos outros programas de calouros populares na época. Recebeu muitos incentivos para continuar cantando. E foi isso que fez década após década.

Com quase 70 anos de carreira, Alaíde celebra os maiores sucessos no show intimista “Turmalinas Negras”, que teve uma sessão lotada no Baretto, dia 30/10, e está com ingressos esgotados para a apresentação na Casa de Francisca, nesta quarta-feira (1/11). “Vou fazer um apanhado de toda a minha carreira. Cantar desde o comecinho até agora com o Emicida”, adianta ela.

Um aspecto que, com frequência, é deixado de fora da história da Bossa Nova é que Alaíde Costa ajudou a fundar esse movimento. Algo parecido aconteceu com o cantor Johnny Alf, a quem Alaíde atribui o legado de ter criado a Bossa Nova, mas que não ganhou o devido reconhecimento, possivelmente, pelo racismo, avalia a artista. Em 1962, logo nos primeiros anos do novo gênero musical, a cantora foi jogada para escanteio num dos shows mais importantes para músicos brasileiros, com o espetáculo “Bossa Nova”, no Carnegie Hall, em Nova York. Estavam presentes Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Sérgio Mendes e Roberto Menescal, mas não Alaíde, que sequer foi avisada sobre o tal show. Aquela não seria nem a primeira, nem a última vez que seria excluída dos espetáculos da Bossa Nova.

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(Arquivo Público do Estado de São Paulo/arquivo)

Finalmente, em 2023, o Carnegie Hall teve a chance de se retratar com a cantora. Em um novo concerto, em homenagem ao gênero, o “Bossa Nova: The Greatest Night” reuniu talentos como Seu Jorge, Daniel Jobim (neto de Tom Jobim), Carlinhos Brown e Roberto Menescal e, dessa vez, Alaíde Costa. Num informe publicitário, publicado no Jornal Folha de S.Paulo, em setembro deste ano, pelo patrocinador do show no Carnegie Hall, uma mensagem direta “Errata de 70 anos”, em menção à apresentação que deixou a cantora de fora. “A Bossa Nova passou quase setenta anos sabendo de cor quem eram seus pais, mas nunca compartilhou a história de uma das suas mães: Alaíde Costa”, dizia a publicação.

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Apesar dos infortúnios, a cantora, que está prestes a completar 88 anos, continua ativa, defendendo a Bossa Nova, colecionando reconhecimentos e celebrando novas parcerias. Em 2020, seu talento como intérprete lhe rendeu o Troféu Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante, no Festival de Gramado. Alaíde se tornou a artista mais velha a ser laureada com o prêmio. Em 2022, de volta à música, lançou “O que meus calos dizem sobre mim”, álbum produzido por Emicida e Marcus Preto. Uma colaboração que continua gerando novos frutos.

Leia a entrevista completa com a cantora a seguir:

Recentemente, a senhora participou do show no Carnegie Hall em homenagem à Bossa Nova e muitos veículos noticiaram como se essa fosse uma reparação histórica, um reconhecimento da sua participação na construção desse movimento musical. Poderia contar o que esse momento significou para senhora? O que aconteceu em 1962?

Realmente, eu acho que foi uma reparação mesmo. Naquele primeiro evento de 1962, quando soube, o pessoal já estava lá, já estava acontecendo tudo e fiquei chocada de não terem ao menos comentado comigo que o evento iria acontecer. Fizeram tudo sem eu saber. E agora foi muito bacana, fui super bem recebida. Estou feliz com isso.

A senhora chegou a dizer em entrevistas que houve pressão para que cantasse canções mais animadas e que se juntasse ao samba. O que fez com que a senhora resistisse a esse tipo de insistência? Sente que houve aliados ao seu lado?

Eu resisti muito. Gosto de samba, mas não sei cantar, do jeito que dizem, um sambinha mais animado. Eu não sei fazer isso. Não tenho nada contra esse estilo, sei sambar. Eu acreditava muito no que queria cantar, canto a vida toda esse tipo de música. Se eu fizesse as concessões de cantar canções mais alegres, eu jogaria tudo aquilo que eu já tinha feito no lixo.

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(Arquivo Público do Estado de São Paulo/arquivo)
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Já que estamos falando de Bossa Nova, contaria como conheceu João Gilberto? Qual foi o papel dele na sua caminhada como cantora e compositora?
Estava fazendo meu segundo 78 rotações (disco com 78 rotações por minuto) no [estúdio da] Odeon, estava cantando uma música chamada ‘Conselhos’, uma canção mais elaborada para a época. A maneira como eu cantava chamou a atenção dele. Ele falou para o Aluísio de Oliveira, que era diretor artístico, que eu tinha tudo a ver com uma música que os meninos estavam fazendo. ‘Fala para ela ir quando tiver uma reunião nossa.’ E assim foi. Na realidade, eu só fui conhecê-lo pessoalmente meses depois. Na primeira reunião que fui, ele não apareceu.

Como eram esses encontros?
Me recordo que aprendi muitas músicas lindíssimas nesses encontros. Era o tipo de música que eu queria para mim. Já vinha cantando as canções do Johnny Alf, acho que foi ele que começou tudo isso. As pessoas sempre comentavam que eu estava cantando músicas difíceis, que isso não daria certo, que deveria ir para o lado oposto, mas eu não fui.

O Johnny foi uma pessoa muito importante na sua trajetória, correto?
Conheci o Johnny quando eu ainda cantava em programas de calouros. Uma cantora chamada Mary Gonçalves gravou um LP de 10 polegadas, e um lado era só as músicas do Johnny. Eu gostava tanto dele que comecei aprender algumas das canções para cantar nos programas. Mas eu só me aproximei dele alguns anos depois. Ele era maravilhoso. Tive o privilégio de fazer muitos trabalhos com ele. Lamento profundamente ele não ter tido reconhecimento. Não adianta dizer que muitas pessoas gravaram suas músicas, ele não foi reconhecido.

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(Murilo Alvesso/divulgação)

Por que a senhora acredita que o reconhecimento não veio?
Pergunta por aí quem foi Johnny Alf, ninguém vai saber responder. Só as pessoas do meio, jornalistas.

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A senhora acha que o racismo teve papel nisso?
Com certeza, com certeza. Na época, eu não percebia isso, era muito ingênua. Inclusive, sei que o fato de eu não ter participado do show no Carnegie Hall foi mais ou menos por esse motivo. Tenho quase certeza.

Ele percebia isso?
Não sei. Ele era muito na dele, não falava muito. Mas passou batido por mim.

A senhora sofreu racismo por integrantes da Bossa Nova?
Eu suponho que sim, enquanto fui útil no movimento, era chamada para os shows de faculdade, mas quando a Bossa Nova se firmou, eu ficava de fora quando os eventos aconteciam. Mas não passava pela minha cabeça de que era racismo.

Em que momento a senhora percebeu?
Muito tempo depois. Quando começaram a falar do racismo, aí caiu a ficha. Foi algo mais recente.

A senhora acha que as coisas estão mudando no mercado musical?
Com certeza, mas eu sou a única negra que canta o que eu canto.

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(Arquivo Público do Estado de São Paulo/arquivo)

Um fator muito interessante no começo da sua jornada enquanto artista era os programas de calouros para revelar novos talentos. Poderia contar o papel que eles tiveram para você?
Eles me deram a oportunidade de amadurecimento. Cantei muito tempo em programas de calouros. Vencia quase todos, mas para chegar ao profissionalismo levou muito tempo. Hoje é mais fácil se tornar profissional. Eu tive que batalhar muito para isso acontecer.

Profissional no sentido de alcançar um nível de excelência ou de entrar para o mercado?
De me tornar cantora profissional. Isso finalmente aconteceu quando eu cantava no Dancing Avenida (casa noturna), um músico me ouviu no programa de calouros, gostou e daí me convidou para um teste no Dancing. Foi o meu primeiro trabalho profissional, foi ali que tive a chance de fazer a primeira gravação.

Qual foi o momento mais importante da sua carreira?
Não saberia dizer. O mais emocionante foi quando cantei no Fino da Bossa no Teatro Paramount (atual Teatro Renault), em 1964. Cantei uma música do Oscar Castro Neves inédita e o público ficou de pé me aplaudindo. Foi um momento muito emocionante na minha trajetória.

Na biografia de Elis Regina, há relatos de que ela foi muito cruel com outras cantoras, inclusive com você, que fez coisas que hoje seriam consideradas como bullying ou assédio. Qual foi a sua experiência com Elis?
Prefiro não falar. Ela não está aqui para se defender.

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Nesses últimos anos, a senhora viveu uma parceria muito bonita com o Emicida, um artista com um estilo muito distinto do seu. Como foi essa experiência? Pretendem manter essa colaboração?
Pretendemos, já estamos no segundo disco. Foi uma experiência maravilhosa. Quando fui procurada pelo Marcus Preto para fazer o disco com o Emicida, eu pensei que ele tinha uma linha muito diferente daquilo que eu faço. Não sabia como seria. Mas quando comecei a receber as canções, eu percebi que estava tudo no caminho certo. Fiquei muito feliz.

Há também um álbum em homenagem a Dalva de Oliveira no forno, certo? O que mais está dentro dos seus planos?
Ainda não está no forno, mas é uma coisa que penso há muitos anos fazer. Ela foi uma cantora com um repertório muito diferente do que eu faço, mas eu aprendi muito com ela sobre a parte da emoção no cantar. Sempre procuro passar a emoção.

Você faz parte de uma geração em que as cantoras valorizavam muito a interpretação. Quais foram os seus aprendizados sobre como interpretar corretamente uma canção?
Quando pego uma canção, eu analiso muito bem a letra para tentar passar o que o letrista está dizendo. Não é fazer uma leitura, mas passar aquilo com a emoção correta. Um trabalho de atriz. É. Eu já fiz teatro e recentemente ganhei um prêmio no Festival de Gramado, num filme que entrei como atriz coadjuvante e simplesmente cantei. Acho que se basearam muito na interpretação da música. Foi uma surpresa.

Sobre o show na Casa de Francisca, poderia adiantar o que planeja para essa noite?
Vou fazer um apanhado de toda a minha carreira. Cantar desde o comecinho até agora com o Emicida.

Em dezembro, a senhora completará 88 anos. Vai ter festa?
Vou fazer uma apresentação no Bona, vou apresentar o LP com a produção do Emicida.

A senhora teria feito alguma coisa de diferente na sua carreira? 
Não. Tudo que fiz valeu a pena!

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