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A arte de escrever e ilustrar temas espinhosos de Nora Krug

Autora convidada da Flip deste ano falou à Bravo! como tem utilizado seu trabalho para discutir o autoritarismo

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 24 nov 2023, 13h26 - Publicado em 21 nov 2023, 17h39

A autora e ilustradora Nora Krug nunca teve medo de abordar temas espinhosos e assumiu o desafio que poderia parecer impensável: falar sobre o nazismo e os riscos do autoritarismo com crianças e adolescentes.

Talvez, ao apresentar desta forma, possa parecer que ela faz isso de maneira protocolar, como em um livro de história, mas não; sua abordagem se dá de forma muito mais pessoal, trazendo aspectos da memória de sua infância, das conversas que tinha com seus pais e de como o tema era tratado nas escolas ou, de modo geral, pela sociedade. É isso que ela faz em “Heimat: Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história” (Quadrinhos na Cia), publicado em 2019. A biografia foi premiada pelo National Book Critics Circle Award daquele mesmo ano.

A obra, escrita e ilustrada por Nora, é quase como um diário, onde a autora aborda a relação de amor por sua cultura, mas sem fugir do sentimento de culpa e vergonha por seu passado histórico. Tamanha é a importância do livro que ele foi incluído no currículo escolar na Alemanha, um fato que Nora vê com muita alegria.

“As imagens têm poder político. Elas podem mudar a maneira como pensamos, podem desencadear revoluções, mas também podem incitar à violência e nos levar a pensamentos extremistas. Como ilustradora, é importante para mim reconhecer o potencial que as imagens têm para impactar a maneira como pensamos e sentimos”, disse em entrevista à Bravo!.

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(Fotografia: Nina Subin/arquivo)

Neste ano, a autora é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde participará da mesa “Venha com um nome de família” para falar do encontro entre memórias pessoais e a literatura, ao lado do brasileiro José Henrique Bortoluci (autor de “O que é meu”, da Fósforo Editora).

Sua vinda ao país acontece pouco tempo depois da publicação de “Sobre a Tirania: Vinte lições do século XX para o presente”, de Timothy Snyder, também pela Companhia das Letras, que conta com as ilustrações de Nora. O livro é resultado de um texto que Snyder publicou em sua conta do Facebook logo após Donald Trump ter sido eleito novo presidente dos EUA, em 2016. Snyder criou correspondências daquele momento com outras passagens históricas em que a democracia deu lugar a governos tirânicos. E a partir daquilo, buscou tirar algumas lições para que os erros do passado não fossem repetidos.

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À Bravo!, Nora falou de sua carreira e refletiu sobre os esforços que seu país fez para se reconciliar com sua história e da importância de criar mecanismos para preservar a memória e, assim, prevenir novos avanços contra a democracia.

Poderia nos contar um pouco sobre a sua história? 
Eu nasci e cresci no sudoeste da Alemanha, perto da fronteira com a França. Meus pais eram ambos professores de educação especial. Frequentei uma escola de música clássica no ensino fundamental e médio, onde meu instrumento principal era o violino. Estar cercada por um grupo de jovens altamente talentosos e pais excessivamente ambiciosos me fez compreender a importância da prática, paciência e resiliência, mas também entendi que focar apenas no sucesso é contraprodutivo. O mais importante é que você se identifique e encontre significado no que faz.

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(Nora Krug/divulgação)

Com que idade você começou a desenhar?
A criação artística é um impulso humano natural, e comecei a desenhar desde cedo, assim como qualquer outra criança. Na infância, frequentemente trabalhava em projetos de arte com meu pai em sua oficina no porão de nossa casa. (No tempo livre, meu pai criava esculturas de madeira, argila e resina). Continuei a desenhar, pintar e criar na adolescência, fazendo livros ilustrados, brinquedos e jogos de tabuleiro. No ensino médio, desenhava quadrinhos baseados em minhas experiências cotidianas para a publicação dirigida por estudantes da escola.

Após me formar, estava indecisa sobre seguir a música ou a arte como carreira. Descobri uma escola em Liverpool, chamada Liverpool Institute for Performing Arts, fundada por Paul McCartney no ano anterior para músicos, dançarinos, atores e cenógrafos, e, esperando explorar tanto a música quanto as artes visuais lá, decidi me inscrever. A abordagem multidisciplinar da escola teve um impacto duradouro não apenas em minha carreira, mas também na maneira como penso na ilustração como meio: em vez de tentar aperfeiçoar um estilo visual ou técnica específicos, vejo a ilustração principalmente como uma ferramenta para contar histórias, comunicar meus sentimentos e pensamentos sobre o mundo. Não sabia que a ilustração era uma profissão real até me mudar para Berlim para estudar Comunicação Visual na Universidade de Artes em Berlim e conhecer o corpo docente de ilustração lá, Henning Wagenbreth.

Esconder-se atrás dessa culpa coletiva parecia mais fácil do que confrontar a própria experiência da Segunda Guerra Mundial de nossas famílias – mas resultou em uma espécie de paralisia emocional. Com meu livro “Heimat”, pretendo incentivar os alemães jovens e velhos a confrontar nosso passado em um nível individual, em vez de coletivo.

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O livro “Heimat” é muito impactante e surpreendente em sua capacidade de envolver um público mais jovem. Você poderia compartilhar o processo de educar sobre a memória de seu país e reconciliar-se com seu passado? Como esse tópico foi abordado nas escolas, e o que você acredita ser crucial para criar uma mudança cultural no sistema educacional?

A década de 1950 na Alemanha foi marcada por um sentimento de negação e esquecimento. Isso mudou na década de 1960, quando uma nova geração de professores mais jovens entrou nas escolas e começou um período de intensa confrontação com nosso passado. Ir para a escola nas décadas de 1980 e 1990 na Alemanha significava que o “Terceiro Reich” e o Holocausto desempenhavam um papel importante em nosso currículo. Analisamos os discursos de Adolf Hitler palavra por palavra, visitamos museus de campos de concentração em toda a Europa e conversamos com sobreviventes que vieram de Israel e América do Norte para nos contar suas histórias. Enfrentar as atrocidades que nosso povo cometeu durante a Segunda Guerra Mundial foi uma experiência intensa para nós como adolescentes, mas também crucial.

Apesar da intensa confrontação com o Terceiro Reich, também havia lacunas em nossa educação: não aprendemos que dezenas de milhares de alemães foram mortos por resistir ao regime nazista (porque teria feito nossos avós, que não resistiram, parecerem mais culpados em comparação?); aprendemos pouco sobre as perdas sofridas durante os bombardeios aliados e sobre os milhões de alemães deslocados das antigas regiões orientais da Alemanha após 1945 (porque sabíamos que sentir pena de nós mesmos estava errado?); e não aprendemos nada sobre a cultura judaica contemporânea.

Também não éramos incentivados a questionar o que aconteceu em nossas próprias famílias, em nossas ruas, em nossas próprias cidades. Não nos ensinaram as ferramentas que nos permitiriam explorar o envolvimento de nossas próprias famílias no regime nazista – o que nos permitiria ter um controle real – ficamos com um profundo sentimento de culpa. Esconder-se atrás dessa culpa coletiva parecia mais fácil do que confrontar a própria experiência da Segunda Guerra Mundial de nossas famílias – mas resultou em uma espécie de paralisia emocional. Com meu livro “Heimat”, pretendo incentivar os alemães jovens e velhos a confrontar nosso passado em um nível individual, em vez de coletivo. Estou muito satisfeita que edições especiais para educadores do governo alemão tenham sido publicadas para serem usadas nas escolas.

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(Nora Krug/divulgação)

Atualmente, como é a abordagem em relação às guerras e ao nazismo na educação? A que idade as crianças e adolescentes aprendem sobre essa história?
Aprender sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial é obrigatório nas escolas alemãs (e a educação domiciliar é ilegal). Acredito que seja ensinado no 8º ou 9º ano. No entanto, eu diria que a maioria das crianças alemãs aprende aspectos sobre o nazismo e nossa história muito antes disso, em casa, com suas famílias. O tema da Segunda Guerra Mundial está sempre presente na Alemanha: na TV, nos jornais, em instituições culturais e políticas em todo o país. O legado do regime nazista está profundamente enraizado em nossa vida diária e continua a moldar a cultura alemã contemporânea. Será interessante observar como a educação sobre o Holocausto mudará nas escolas alemãs, agora que a geração que vivenciou a guerra e o Holocausto está morrendo. O aumento da extrema-direita na Alemanha preocupa muitos alemães e significa que teremos que repensar como podemos manter esse assunto vivo e acessível a todos os jovens alemães, incluindo aqueles que imigram para a Alemanha de países nos quais o Holocausto não é ensinado, ou até negado.

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Como você aprendeu a amar sua própria cultura, conhecendo tantas histórias terríveis sobre ela?
Eu amo muitos aspectos da minha cultura – o senso de profundidade e melancolia em sua música e literatura, o compromisso de lembrar e dialogar sobre assuntos sérios, a paisagem, a comida – mas admito que ainda acho difícil celebrar minha cultura abertamente. A maioria dos alemães hoje ainda luta para abraçar sua herança e mostrar um senso de orgulho nacional. Temos uma rica tradição de canções folclóricas alemãs, por exemplo, mas a maioria dos alemães não cresce aprendendo essas músicas, nem cantamos espontaneamente em grupos em público. Os alemães contemporâneos são muito individualistas. Embora eu seja uma dessas pessoas, eu realmente acho importante que os alemães aprendam a abraçar sua identidade cultural (enquanto continuam a confrontar seu passado difícil), porque ser paralisado por nossa história pode nos impedir de tomar as decisões corretas no presente. Não podemos simplesmente deixar para a extrema-direita celebrar nossa herança alemã.

Ao chamar o livro de “Heimat”, tentamos recuperá-lo da extrema-direita e nos comprometer com a ideia de que você pode amar seu país e ainda confrontar criticamente seus momentos mais sombrios na história. Isso não deveria ser uma contradição.

 

Em seu livro, você menciona experiências de discriminação devido à sua identidade alemã, retratando-a como uma imagem manchada. Isso ainda acontece, e qual é a sua reação? Você acha que os estereótipos aos quais você foi submetida foram quebrados?
Os incidentes que descrevo no livro (ser cuspida na rua por estranhos; ser saudada com a saudação nazista; ou ser confrontada com ideias clichês e antiquadas sobre o caráter alemão) aconteceram há muitos anos e não acontecem desde então. Acredito que a reputação da Alemanha no mundo mudou por uma variedade de razões: nosso sucesso econômico, nossa visão de mundo – em grande parte – liberal, nossa consciência ambiental e nossa cena contemporânea de arte e música. No entanto, sempre que ocorre um incidente antissemita na Alemanha, a imprensa estrangeira ocidental – compreensivelmente – o cobre em detalhes. Existe uma sensação persistente de que essas tendências na Alemanha precisam ser observadas com cuidado. Esse grau de escrutínio em relação a atos de intolerância ou violência contra minorias também deve se aplicar a todos os outros países do mundo.

Você escolheu a palavra ‘Heimat’ como título. Dependendo do contexto, ela pode ter uma conotação negativa. É necessário redefini-la? Por que você fez essa escolha?
Inicialmente, meu editor alemão era contra chamar o livro de “Heimat” porque o termo tem muitas conotações negativas com os nazistas, que o apropriaram para seus próprios fins: definir um espaço estreito e exclusivo para identificação que eventualmente levou à morte de milhões. Durante os seis anos em que trabalhei no livro, o cenário político na Alemanha mudou.

Pela primeira vez desde 1945, um partido de extrema-direita chegou ao parlamento, e vimos um aumento repentino no apoio à extrema-direita em toda a Alemanha. A extrema-direita é o único grupo na Alemanha que usa livremente o termo “Heimat” em um contexto positivo. Foi exatamente por causa dessa mudança política que ocorreu na Alemanha enquanto eu trabalhava no livro que meu editor alemão e eu decidimos chamá-lo de “Heimat”: ao chamar o livro de “Heimat”, tentamos recuperá-lo da extrema-direita e nos comprometer com a ideia de que você pode amar seu país e ainda confrontar criticamente seus momentos mais sombrios na história. Isso não deveria ser uma contradição.

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(Nora Krug/divulgação)

Como viver em outro país ajudou você a reconectar e reconciliar-se com sua própria cultura?
Foi apenas ao me mudar da Alemanha que percebi o quão alemão sou, quão profundamente me conecto com minha cultura e minha herança. De certa forma, a distância geográfica me permitiu me aproximar de minhas raízes, ver coisas que não havia visto antes. Hannah Arendt disse uma vez: “Quando todos são culpados, ninguém é.” Esta foi minha própria experiência crescendo na Alemanha: todos ao meu redor tinham membros da família que não resistiram ao regime, que se juntaram à Juventude Hitlerista, que serviram no exército que seguia as ordens de Hitler. É fácil se esconder atrás da culpa coletiva.

Mas quando deixei a Alemanha e me mudei para Nova York, um lugar que acolheu muitos refugiados judeus sob o regime de Hitler e ainda é uma cidade muito judaica, eu não tinha culpa coletiva para me esconder. Eu era visto como um indivíduo, um representante da Alemanha, e percebi que, mesmo que tentasse deixar para trás, carrego o passado do meu país dentro de mim. Isso me impulsionou a confrontar finalmente o assunto em um nível individual, descobrir o que aconteceu em minha própria família sob o regime nazista, pela primeira vez.

Como um brasileiro, notei um trecho em que você menciona a derrota por 7-1 na Copa do Mundo de 2014. Não parece ter sido um momento de grande celebração para você e muitos outros alemães, imagino. Você poderia explicar por quê?
Claro, os alemães celebraram a vitória contra o Brasil. Mas também houve um senso de contenção. Mesmo que a bandeira alemã contemporânea remonte à década de 1840, e apesar de os nazistas terem banido a bandeira em favor de sua bandeira com a suástica, muitos alemães ainda têm uma relação difícil com ela hoje em dia. Os jogos de futebol estão entre as poucas ocasiões em que se vê a bandeira alemã exibida publicamente. Antes do jogo, políticos e professores universitários na televisão alemã discutiram sobre a adequação de exibir a bandeira alemã. Membros do movimento antifascista pediram a eliminação de tudo que carregava as cores da bandeira alemã e gritavam “Quem ama a Alemanha não merece nada além de ódio.”

No dia do jogo, à medida que a Alemanha marcava gol atrás de gol, os apresentadores de televisão pareciam ficar cada vez mais desconfortáveis. “Não devemos nos entusiasmar demais agora”, disse o treinador da equipe alemã depois que o sétimo gol foi marcado. Muitos alemães se sentiram desconfortáveis, preocupados que a “derrota” do Brasil evocasse memórias da Segunda Guerra Mundial. Mais de 95.000 referências nazistas foram postadas no Twitter no dia do jogo. O New York Times escreveu: “Brasil Deixado Humilhado pela Dominância da Alemanha”, e “os alemães foram impiedosos”, e “um massacre de futebol da mais alta ordem”. Foi triste observar que uma partida de futebol ainda poderia trazer tantas associações com o regime nazista, quase 70 anos após o fim da guerra, tanto na Alemanha quanto no exterior.

Falar sobre a Segunda Guerra Mundial na geração dos meus pais não era tabu, mas porque era tabu para a geração dos meus avós, muita coisa ficou sem ser dita.

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Imagino que você tenha passado por uma transição significativa durante a sua infância. Houve conflitos intergeracionais no país durante esse tempo?
Meus pais nasceram em 1946 e frequentaram a escola e a universidade nas décadas de 1950 e 1960. Eles faziam parte da geração que começou a questionar o passado nazista da Alemanha. Falar sobre a Segunda Guerra Mundial na geração dos meus pais não era tabu, mas porque era tabu para a geração dos meus avós, muita coisa ficou sem ser dita. Minha própria geração cresceu com um senso de distância mais forte do que a geração dos meus pais: não eram nossos pais, mas nossos avós que estavam envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o que significava que lidar com o passado era menos emocional e menos pessoal.

Nos anos 70 e 80, os alemães decidiram coletivamente que o assunto precisava ser confrontado aberta e institucionalmente. O que falta é a confrontação pessoal, e poucos alemães vão aos arquivos descobrir o que realmente aconteceu em suas famílias. Para os alemães da minha geração, a reflexão é mais multifacetada do que para a geração dos meus pais: não pensamos apenas no que nossos avós fizeram ou deixaram de fazer sob o regime nazista. Pensamos sobre o que viver com o legado do regime nazista significa para nós e para as gerações futuras. A abordagem é menos acusatória e mais interna.

No Brasil, discutimos os desafios de lidar com nosso passado marcado pela violência e, às vezes, pela vergonha, seja relacionado à experiência da escravidão ou aos anos da ditadura militar (1964 – 1985). O que o Brasil pode aprender da Alemanha nesse sentido?
É difícil aplicar a abordagem de um país à de outro, porque a cultura e a história de cada país são únicas. Em um nível meramente humano (e menos cultural), minha experiência é que, mesmo que a vergonha seja uma reação natural e saudável, ela pode ser paralisante e, portanto, nos inibir de realmente confrontar nosso passado. Para mim, a chave é substituir gradualmente o termo “vergonha” por “responsabilidade”: aceitar que cometemos erros e tentar aprender com nossa história – pesquisando e confrontando-a, mas também aplicando o que aprendemos ao presente.

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(Nora Krug/divulgação)

Sobre o livro “Sobre a Tirania”, como você abordou visualmente o desafio de ilustrar conceitos abstratos e complexos relacionados à tirania e à política para torná-los acessíveis e impactantes para os leitores?
“Sobre a Tirania” foi muito diferente dos meus livros anteriores: não há narrativa ou arco emocional. É um livro sobre fatos, ideias e ideologias, um guia sobre o que podemos fazer para reconhecer e resistir às raízes das ditaduras. Tentei criar imagens fortes que resumissem a essência do que cada capítulo aborda. No entanto, era importante para mim que as imagens transmitissem a ideia de maneira simbólica, em vez de literal, porque acredito que uma abordagem mais poética permite uma identificação emocional mais forte e, ao fazer isso, também uma maior capacidade de memorizar e reter informações. Para mim, o objetivo de um ilustrador não é traduzir um texto de forma literal, mas criar uma camada adicional que permita um tipo diferente de acesso emocional ao que está escrito. Mantendo o texto de Snyder no centro das minhas ideias, tentei encontrar soluções visuais que estimulassem os leitores a recontextualizar o conteúdo do livro, que os envolvessem e, esperançosamente, surpreendessem. Meu objetivo era criar uma série de imagens que enfatizassem a urgência do pensamento político crítico e da ação, o que é tão relevante agora quanto era antes.

O livro “Sobre a Tirania” enfatiza a influência da vigilância como uma ameaça à democracia. Qual impacto visual você esperava alcançar na percepção dos leitores sobre esses temas?
As imagens têm poder político. Elas podem mudar a maneira como pensamos, podem desencadear revoluções, mas também podem incitar à violência e nos levar a pensamentos extremistas. Como ilustradora, é importante para mim reconhecer o potencial que as imagens têm para impactar a maneira como pensamos e sentimos, e usar o meio de maneira responsável. Assim como fiz com meu livro anterior, “Heimat”, decidi combinar uma variedade de estilos visuais e criar a ideia de um álbum de fotografias, elementos gráficos e ilustrações. Com isso, eu queria enfatizar as maneiras multifacetadas como construímos o que chamamos de “história” e a natureza fragmentária de como percebemos memória, lugar e tempo, como experienciamos e posteriormente construímos e reconstruímos nossa compreensão de história e guerra, e como a memória desses eventos é transmitida de geração em geração. Por mais que tentemos dar sentido a eles em retrospectiva, atribuindo-lhes um significado cronológico e conceitual específico, a história é também uma acumulação de momentos individualmente experimentados no tempo. A memória, na maioria, depende de imagens fragmentárias, fluidas e complexas em sua interdependência e lógica interna. Eu esperava que essa interpretação visual, como uma colagem personalizada, permitisse um envolvimento emocional profundo com o texto. Também senti que a tridimensionalidade de algumas das minhas colagens de papel permitiria que os leitores se conectassem de maneira mais visceral com o assunto. Ao criar imagens que incorporam visualmente o próprio processo criativo e mostram as marcas físicas de como foram feitas, tentei enfatizar que deixamos rastros, que a democracia em si é um trabalho em andamento, que muitas vezes estamos ativamente envolvidos nos processos políticos positivos e negativos, e nos deslocamentos graduais da democracia para a ditadura que Timothy Snyder descreve em seu livro.

Pode nos contar sobre o processo de diálogo e colaboração com o autor, Timothy Snyder, na criação das ilustrações para “Sobre a Tirania”?
Pouco depois que “Pertencimento” (versão ilustrada de “Heimat”) foi publicado, Timothy Snyder me abordou e perguntou se eu queria trabalhar com ele em uma edição gráfica de seu livro anteriormente publicado, “Sobre a Tirania: Vinte lições do século XX para o presente”. Ilustrar este livro parecia uma continuação natural do meu trabalho anterior sobre guerra e conflito político (“Diaries of War: Two Visual Accounts from Ukraine and Russia”, sem publicação no Brasil), e fiquei grata por ser convidada a contribuir. Nos encontramos duas vezes brevemente antes de eu começar a trabalhar no projeto, não exatamente para discutir como a colaboração funcionaria, mas para nos conectarmos em um nível pessoal. Depois disso, comecei a trabalhar em seu livro página por página, capítulo por capítulo. Por vezes, eu enviava para ele e para meu editor um lote de páginas que eu havia concluído, e todos foram muito solidários. Com algumas pequenas exceções, nem o editor, nem Snyder me pediram para fazer alterações. Houve um sentido de imensa confiança, o que me permitiu explorar e experimentar – o cenário ideal para qualquer ilustrador.

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