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“A Incrível Lavanderia de Corações” e o desejo de reescrever o passado

Livro da autora sul-coreana Yun Jungeun, lançado pela Intrínseca, faz uso da fantasia para tratar de sentimentos dolorosos, como o arrependimento

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 29 abr 2024, 13h53 - Publicado em 16 abr 2024, 09h00

O que aconteceria se pudéssemos apagar as manchas e feridas em nossos corações? Essa pergunta intrigou a escritora sul-coreana Yun Jungeun por anos. Sua grande dúvida era: as pessoas seriam mais felizes se pudessem mudar seus passados e escolhas? Foi ao menos uma década até que a indagação se materializasse em A Incrível Lavanderia de Corações, publicado neste mês pela Editora Intrínseca. O romance se junta à lista de obras de autoras sul-coreanas que recentemente conquistaram o Brasil como Han Kang — vencedora do Man Booker Prize com A Vegetariana — e You-Jeong Jeong, aclamada pelo thriller psicológico O Bom Filho.

Embora não seja uma biografia, A Incrível Lavanderia de Corações incorpora pensamentos e sensações da autora. “Uma frase sobre ‘semáforos’ se conecta a um momento difícil que vivenciei. Estava parada em um semáforo, indo buscar meu filho, e a espera me causou extrema ansiedade. Capturar e escrever essa experiência foi reconfortante”, disse Yun à Bravo!. Este é o seu primeiro livro  publicado no Brasil. São dela também as obras Live the Way You Want, Even If I Don’t Know How to Be an Adult e To Travel or To Love. Para Yun, dores e alegrias coexistem, mas a tristeza domina a maior parte de nosso tempo. Por isso, a busca pela felicidade se torna essencial, um tipo de missão. A publicação, categorizada como healing fiction (ficção de cura ou ficção que cura), por trazer temas como amor e esperança, narra a história de Jieun, uma jovem prestes a alcançar a maioridade que vive em uma vila mágica.

Jieun carrega um dom de realizar desejos, mas ainda não sabe controlá-lo, o que gera um acidente. Sem querer, ela faz seus pais desaparecerem e, para consertar o erro, ela embarca em uma viagem no tempo para encontrá-los. Para isso, precisa renascer inúmeras vezes. Sem sucesso, cada vez mais abalada e indiferente, Jieun pondera desistir da missão e viver a vida apenas uma vez.

Um dia, a jovem tem uma epifania e decide comprar uma antiga lavanderia. Em vez de lavar roupas, o local se torna um consultório, onde Jieun usa seus poderes para ajudar pessoas a se livrarem de suas tristezas. Com auxílio do tradutor Luís Girão, a Bravo! entrevistou Yun Jungeun no início do mês sobre seu novo livro, seu processo literário e a difusão da literatura sul-coreana pelo mundo.

Poderia compartilhar um pouco sobre sua jornada pessoal? Quando e como surgiu o desejo de se tornar escritora?

Durante a infância, naturalmente passei a ler livros do acervo da minha família. Por ser uma criança com pouco traquejo social, gostava de mergulhar sozinha no mundo da leitura e da imaginação que os livros proporcionavam. Minha escrita começou na adolescência, com poesia. Foi naquele momento, de escrita e leitura, que me senti verdadeiramente livre. Decidi passar o começo dos meus 20 anos me desafiando a fazer outras coisas que desejava e acabei vivenciando alguns fracassos. No meio desse processo, passei a levar a sério o meu verdadeiro sonho e finalmente comecei a escrever um livro. Felizmente, consegui ser publicada aos 26 anos e dei início à minha carreira profissional como autora. Ainda hoje, o que mais gosto de fazer é ler e escrever, e meu desejo é ser capaz de viver uma vida profissional imersa na leitura e na escrita por muito tempo.

Como surgiu a inspiração e a ideia para escrever A Incrível Lavanderia de Corações?

No terraço da casa onde eu morava havia dois varais pendurados. Sou a mais nova de três filhas, então estava acostumada a fazer as tarefas de casa sozinha, e quando lavava à mão as roupas que pareciam delicadas demais para serem danificadas, pendurava-as no varal em um dia ensolarado e ficava observando a água escorrer, pingar e evaporar, imaginando que esse vapor flutuava como pétalas de flores. Carregando essa imagem comigo, ponderei durante um bom tempo: “O que aconteceria se pudéssemos apagar ou mudar as manchas, ou feridas em nossos corações?” Pensei também em quais escolhas faríamos e como os resultados seriam diferentes, e ouvi histórias de pessoas que convivia e as histórias que trazia dentro de mim. Fiquei com este pensamento ecoando por mais de uma década. Quando completei quarenta anos, a resposta à minha pergunta foi pouco a pouco se desvelando e, com ela, a primeira frase de A Incrível Lavanderia dos Corações apareceu.

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A escritora sul-coreana Yun Jungeun, autora de “A Incrível Lavanderia de Corações” (Ilho Yun/divulgação)

Ao ler o romance, é inevitável refletir sobre a sociedade contemporânea e a prevalência de desesperança entre os jovens, considerando os acontecimentos globais atuais. Especificamente, como a depressão e a ansiedade, cada vez mais comuns entre as novas gerações, influenciaram seu processo criativo?

O crescente fenômeno social da depressão e da ansiedade é realmente lamentável. No entanto, como não há remédio para a dor interna do coração, também pensei que seria bom se houvesse um remédio capaz de ser aplicado, tal qual fazemos em uma ferida no corpo, quando nos sentimos deprimidos ou ansiosos. Ao que parece, os autores desempenham um papel na captura da era atual e dos fenômenos sociais por meio de suas obras. Seríamos mesmo capazes de curar, confortar ou apoiar quem está vivendo essas dores a seguir em frente com calma e serenidade? As questões atuais de dor, sofrimento e tristeza afetaram também as personagens deste romance. Acredito que a vida consiste em 80% de tristeza e 20% de alegria. A tristeza é uma emoção linda. Às vezes, a tristeza nos dá forças para viver. Contudo, se pensarmos na vida apenas como uma grande tristeza, ela se tornará muito triste. Sendo assim, penso que devemos viver para encontrar a alegria, ou a menor das felicidades, no dia a dia, cobrindo a tristeza com um manto de alegria. Talvez esses pensamentos tenham influenciado a direção que as personagens do romance tomaram.

Como sua experiência pessoal e cultural influenciou a construção das narrativas e dos personagens em seus escritos?

De fato, minhas experiências pessoais e culturais desempenharam um papel significativo no processo do livro A Incrível Lavanderia dos Corações. Muitas das minhas frases derivam de experiências que vivi. Por exemplo, há uma sobre semáforos que está ligada a algo que me ocorreu durante um momento particularmente difícil, de quando eu estava parada em um semáforo e a simples espera até o sinal mudar me causou uma ansiedade extrema. Capturar aquele momento e escrevê-lo em uma frase foi reconfortante para mim, e a incorporei no romance. Assim sendo, procuro ver e ouvir o máximo possível de aspectos culturais, aceitando-os sem preconceitos.

Você identifica alguma semelhança pessoal com a personagem Jieun?

Parece haver mesmo uma semelhança, pelo fato de ambas termos cabelos pretos e longos (risos). Como é meu primeiro romance, Jieun tem muito do temperamento e das inclinações que trago comigo. Na verdade, quando criei a personagem, eu observava as pessoas que se encontravam comigo e compartilhavam suas histórias mais íntimas, em detalhes, como nunca haviam contado antes. Em algum momento, essas histórias começaram a soar como canções, e ao olhar para a vida de todas essas pessoas, elas pareciam dolorosas, mas lindas – como uma flor. E enquanto ouvia essas histórias, também ponderei sobre como lidar com tantas dores, cicatrizes e rugas. Acho que essa inclinação é bem semelhante à de Jieun.

Há algum aspecto específico de sua obra que você gostaria que os leitores explorassem mais profundamente ou que prestassem uma atenção especial?

Acredito que, assim que uma obra sai das minhas mãos, ela não pertence mais a mim, mas aos leitores. Portanto, espero que os leitores se concentrem e ouçam suas vozes interiores enquanto leem meu livro, em vez de focar em características artísticas da obra que eles deveriam explorar ou prestar atenção. Provavelmente, sentimentos como a esperança já residam em meu coração, assim como a felicidade existe em minha vida, mas muitas vezes deixamos de reconhecer esses sentimentos por serem modestos, ainda que brilhantes e deslumbrantes. Como autora, eu ficaria verdadeiramente feliz se, ao ler o meu livro, alguém pudesse refletir sobre a sua vida e descobrir os momentos brilhantes e deslumbrantes do seu dia a dia.

Nos últimos anos, observamos um aumento significativo na divulgação da literatura de autoras mulheres coreanas em outras partes do mundo, incluindo o Brasil. Na sua opinião, o que explica esse crescimento e conexão com essas obras e autoras?

Eu acho lindo. No entanto, como muitas outras autoras, também não gosto de ser encaixada no termo “autora mulher coreana”. Embora seja claro que sou uma mulher, fico muito feliz por tantos autores coreanos estarem sendo reconhecidos, independente de gênero, uma vez que não se dá atenção específica aos “autores homens coreanos”. Existem muitos escritores na Coreia que escrevem obras belíssimas. E espero que mais e mais desses trabalhos sejam lidos globalmente.

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Este movimento parece ir na contramão de muitos países ocidentais, onde os autores masculinos recebem mais destaque. Você acredita que a literatura de autoras mulheres tem sido mais eficaz em retratar a realidade de forma mais abrangente e verdadeira do que a dos homens?

Acho que talvez a razão pela qual as mulheres coreanas tenham uma forte capacidade de transmitir a realidade seja porque elas possuem uma força para viver ferozmente suas vidas. Houve um tempo em que me perguntei que tipo de obra eu poderia ter escrito se pudesse me concentrar apenas no meu trabalho, sem ter que cuidar dos afazeres de casa ou dos filhos. Contudo, o pensamento que emerge do processo de superar circunstâncias difíceis não só me influencia na escrita de boas frases, como também me liberta. Como nunca vivi como homem, não consigo compreender plenamente as dificuldades da vida deles. Porém, a luta para conseguir tempo para escrever sendo mulher foi determinante. Ela me deu forças e me ajudou a me concentrar mesmo que em períodos curtos. Antes de ser mãe, eu costumava viajar se tivesse problemas para escrever, mas depois da maternidade eu tenho apenas um horário disponível para isso, então faço o meu melhor para escrever dentro desse único tempo, esteja a escrita indo bem ou não. Talvez essa determinação seja a base para a capacidade de transmitir a realidade.

Diante do cenário atual da indústria editorial coreana, quais são os principais desafios enfrentados por autoras mulheres e como você acredita que esses obstáculos podem ser superados?

Se você é solteira e nunca foi casada, é bem provável que sinta os fardos do casamento e do parto. Se você é casada, seu maior desafio pode ser o de reservar tempo para escrever e pensar distraidamente, ou fazer nada, entre cuidar dos filhos e da casa. Em vez de preconceito ou discriminação contra as mulheres, pergunto-me se o maior desafio não é a satisfação no trabalho pessoal. Superar… o que se deve fazer? Vou experimentar algumas coisas e volto a falar sobre isso. Ainda estou neste processo de superação.

Quais autores e autoras coreanas você recomendaria que conhecêssemos?

Gosto dos autores coreanos Park Wan-suh, Ki Hyung-do e Yi Sang, e, caso tenham a oportunidade, espero que possam ler os livros deles.

Você está familiarizada com a literatura brasileira? Existe algum escritor ou escritora brasileira que você admire?

Assim como muitos leitores brasileiros não são familiarizados com a literatura coreana, eu também ainda não cheguei a ter contato com nenhum autor brasileiro, mas gostaria de ter um contato mais frequente com a literatura brasileira no futuro.

Já teve a oportunidade de visitar o Brasil? Se não, tem planos de fazê-lo no futuro?

Eu quero muito visitar o Brasil. Seria demais se A Incrível Lavanderia dos Corações recebesse muito amor dos leitores, a ponto de eu poder visitar o país num futuro próximo. (Risos)

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Há algum projeto em andamento que gostaria de compartilhar conosco?

Gosto de histórias sobre a humanidade, relacionamentos, pessoas, amor e as vidas das pessoas. Estou profundamente interessada em todas as emoções sentidas no dia a dia, que podem ser descartadas por serem consideradas comuns, mas que guardam os momentos mais bonitos e preciosos. Quero incluir essas histórias em meus romances. Algum dia, também gostaria de escrever um romance sobre amantes apaixonados. Fico muito feliz em utilizar este espaço para compartilhar minhas histórias com os leitores brasileiros. Continuarei escrevendo romances com a alegria de sempre. Que possamos nos reencontrar em meus próximos trabalhos.

 

 

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