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O bromance literário de Bioy e Borges

Livro “Bioy & Borges”, da Cia. Das Letras, reúne as obras completas escritas pelos dois autores argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares

Por Humberto Maruchel
27 out 2023, 11h01

Poderia ser apenas uma aventura passageira, mas ela se prolongou em uma sólida relação de 50 anos. Esta, que poderia ser a introdução clichê de um romance qualquer, é, na verdade, apenas uma maneira de descrever um dos relacionamentos mais duradouros da literatura do século 20: o dos autores argentinos Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Juntos, escreveram contos, crônicas, traduções, argumentos para filmes – que foram rejeitados –, entre outros. E em agosto, a Companhia das Letras lançou “Bioy & Borges” (R$ 150), obra que reúne todos os textos escritos em parceria pelos dois literatos com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro.

Diante de Bioy e Borges, os ingleses Charles Dickens e Wilkie Collins teriam sentido inveja. J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis não alcançariam a mesma harmonia na escrita. Certamente houve muitas parcerias populares na literatura, mas é difícil encontrar uma que tenha prosperado tanto quanto a dos dois criadores defensores da literatura fantástica. Era o início da década de 1930 quando os dois escritores, naturais de Buenos Aires, se conheceram no museu Villa Ocampo, em San Isidro. Bioy era um adolescente de 17 anos, já bastante talentoso na escrita. Borges, por sua vez, estava no início de seus 30 anos e já era conhecido por seus trabalhos. A conversa inicial fluiu bem e eles decidiram voltar juntos para Buenos Aires.

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Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, escritores argentinos. (Reprodução/divulgação)

Levaria alguns anos até que os dois dessem início à primeira colaboração literária. Vicente Lorenzo del Rosario Casares, tio de Bioy, era o dono da empresa de laticínios La Martona e precisava de ajuda para criar um folheto para vender suas coalhadas. Em 1936, Vicente encomendou o trabalho a Bioy e Borges prometendo uma remuneração generosa a ambos. Mais tarde, Borges descreveria esse evento como um dos mais importantes de sua vida.

Como resultado, eles entregaram a Vicente um texto um pouco azedo, mas bastante inventivo. O panfleto, no final das contas, não serviu para os propósitos publicitários do tio. “Esse texto se tornou muito delirante. Eles inventaram uma família búlgara longeva, que só era longeva porque consumia esse iogurte”, conta Emílio Fraia, editor da Companhia das Letras, responsável pela organização do livro “Bioy & Borges”. Fraia observa que esta é a primeira vez que o folheto publicitário é traduzido para o português.

Por outro lado, parecia que uma nova voz surgia daquela amizade, a qual continuaria produzindo novas ficções. “Quando eles saíram dessa experiência em 1936, parecia que eram pessoas diferentes. Eles descobriram algo novo, uma espécie de terceira entidade que não tinha nada a ver com o que eles faziam individualmente”, resume o editor.

Na década de 1940, a relação deu mais um passo. Decidiram criar pseudônimos para os primeiros trabalhos produzidos em colaboração. Primeiro veio Honório Bustos Domecq e, em seguida, Benito Suárez Lynch. Os nomes eram uma combinação dos sobrenomes dos bisavós dos literatos.

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A colaboração, pelo ponto de vista do trabalho de Bioy e Borges, pode ser entendida quase como um gênero literário à parte. Era uma fusão de estilos, temas, ritmos, vozes e interesses, além de emprestar o prestígio de dois escritores. O encontro deles facilitou o desenvolvimento de uma escrita que quebrou preconceitos e rejeitou os padrões individuais de ambos os romancistas. A parceria encorajava a tentar algo diferente. “Do ponto de vista estético, a obra que eles escreveram juntos é suja, barroca e delirante. Está repleta de digressões, com uma trama que começa e, de repente, se perde. É tudo o que eles abominavam em suas obras individuais”, descreve Fraia.

Quando os dois se uniam, uma personalidade isolada surgia, uma espécie de Frankenstein bem-sucedido. E isso deixava vestígios mesmo em seus estilos individuais. “Bioy afirmou que aquele folheto representou uma valiosa aprendizagem e que, após essa redação, ele se tornou outro escritor. Borges descobriu que seu virtuosismo ganhava quando submetido ao princípio de naturalidade de Bioy. Eles descobriram uma complementaridade ali. Cada um oferecia o que o outro não tinha”, conta Fraia.

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Liro Companhia das Letras, sobreposição das imagens dos dois escritores (Editora Companhia das Letras/reprodução)

Liro Companhia das Letras, sobreposição das imagens dos dois escritoresNessa época, Borges pensava que uma colaboração desse tipo fosse impossível. No entanto, juntos começaram a desenvolver uma trama policial sob o nome de Honório Bustos Domecq. “A longo prazo, ele (Honório) nos governou com firmeza e, para nossa diversão e depois nossa consternação, ele se tornou completamente diferente de nós, com seus próprios caprichos, trocadilhos e estilo de escrita muito elaborado”, disse Borges. Foi assim que nasceu “Seis Problemas para Don Isidro Parodi” (1942), uma coletânea de seis contos policiais, possivelmente o trabalho mais conhecido dos literatos. Em cada um deles, Don Isidro é desafiado a resolver crimes que parecem não ter solução. A grande peculiaridade dessas histórias é que o detetive está preso na cela 273 da Penitenciária Nacional de Buenos Aires e desvenda os enigmas apenas a partir dos relatos que ouve. “Acredito que essa literatura possui muita ironia. Ler com essa chave é fundamental. Eles estão se divertindo ao escrever aquilo; os personagens são caricatos, as tramas dialogam com o gênero policial. Há bastante chistes”, descreve o editor.

Outros textos conhecidos surgiram posteriormente, como “Duas Fantasias Memoráveis” e “Um Modelo para a Morte”, de 1946, bem como “Os Suburbanos” e “O Paraíso dos Crentes”, de 1955. “Os valores que eles defendiam, como precisão narrativa, economia, tramas sólidas, falta de ênfase, uma certa naturalidade e sobriedade, nas mãos desse terceiro escritor, acabam cedendo. Parece que eles renunciam a todo decoro e, aqui, as tramas se complicam; tudo é guiado pela digressão”, resume Fraia.

Borges admitiu que tentou criar colaborações com outros criadores, mas nenhuma delas teve sucesso. “Muitas vezes me perguntaram como a colaboração é possível. Acho que requer um abandono conjunto do ego, da vaidade e talvez da polidez comum. Os colaboradores devem esquecer de si mesmos e pensar apenas no trabalho.” Ele foi generoso ao considerar “As Crônicas de Bustos Domecq” uma obra melhor do que qualquer outro trabalho publicado sob seu próprio nome.

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Para Fraia, a relação entre os dois teve um desfecho apoteótico após a morte de ambos, quando o diário de Bioy foi publicado. “É o grande final dessa amizade, que por si só foi uma performance literária. Ele abrange todos os anos nos quais eles estiveram juntos. Todas as entradas do livro começam com a frase ‘Hoje Borges jantou em casa’. Durante 50 anos, Borges jantou quase todos os dias na casa de Bioy. E lá eles falavam sobre outros escritores, inventando personagens e tramas. Há até uma cena famosa em que a esposa de Bioy estava escutando atrás da porta para descobrir o que eles tanto riam. ‘Do que estão rindo esses idiotas?’, ela perguntou. Eles falavam de tudo, falavam mal de outros autores. Era uma amizade maledicente.”

O charme e a simpatia que a amizade dos escritores irradiava, no entanto, não são motivos suficientes para romantizar ou justificar os valores dos criadores. No mesmo diário, Bioy se torna cúmplice de uma visão extremamente arcaica de Borges, que expressou pensamentos racistas e xenofóbicos várias vezes, especialmente em relação ao Brasil. “Eu tiraria os negros dos Estados Unidos e, se ninguém me impedisse, faria o mesmo no Brasil. Se não se livrarem dos negros, transformarão o país em outra África”, afirmou em um desses encontros. Em outra ocasião, ele foi além: “O Brasil é um lugar exótico; está perto de nós, mas não queremos visitá-lo… parece-nos um país de macacos”.

Fraia destaca que essa faceta não está presente nas obras publicadas no livro “Bioy & Borges”, embora seja possível identificar “personagens com visões pouco ortodoxas” aqui e ali. “O diário oferece uma visão muito diferente daquilo a que estamos acostumados em relação a Borges. Ele apresenta uma visão mais etérea, falando de labirintos, espelhos e eternidade. Parece que é uma obra menos ancorada em questões históricas. O diário de Bioy, por sua vez, oferece outra visão de Borges. Parece que há dois personagens com falhas, preconceitos e erros. Borges tinha opiniões pouco elogiosas sobre muitas questões. Isso também ajuda a destacar as ambiguidades. Politicamente, ele era uma figura muito controversa.” Visão essa que remete àquela famosa frase que diz ser melhor não conhecer nossos ídolos.

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Capa do livro Bioy & Borges: Obra completa em colaboração (Companhia das Letras/reprodução)
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