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Uma ode ao bom e velho rock ‘n roll

Depois de 30 anos, André Barcinski atualiza seu livro "Barulho" e traz saudades de um tempo em que as guitarras ainda carregavam a bandeira da contracultura

Por Artur Tavares
Atualizado em 5 abr 2023, 10h18 - Publicado em 5 abr 2023, 09h58

Sempre acreditei que escrever em determinadas editorias do jornalismo tem um pouco a ver com alimentar o próprio lado fã de experiências únicas e inusitadas. É assim com o futebol e com os esportes em geral, e é assim com a música. É pré-requisito assistir todos os jogos da rodada, ou então ouvir atento aos discos da semana. Exige dedicação, pesquisa, uma imersão completa. No Brasil, ainda é possível viver bem sendo um jornalista especializado em esportes. Em cultura, os bons tempos já se foram.

Naqueles bons tempos, o jovem repórter André Barcinski emplacou um freelancer dos sonhos para a revista Bizz: faria uma volta por sete cidades americanas para entrevistar grandes astros do rock e também joias e novidades do underground. Aos 23 anos, em 1991, ele viu um dos primeiros shows do Nirvana e conversou com a banda, pôde acompanhar Anthony Kiedis e o Red Hot Chili Peppers no lançamento do seminal Blood Sugar Sex Magik, visitou Joey Ramone, líder dos Ramones, em seu apartamento em Nova York, e ainda viu de perto o surgimento de uma forte cena de hardcore.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

Na época um prodígio do jornalismo que também tinha intimidade com a câmera fotográfica, André entregou a série de reportagens para a Bizz. Pouco tempo depois, decidiu reunir os textos de sua viagem em um livro, que viria a se tornar Barulho, publicado em 1993.

Barulho venceu o Prêmio Jabuti e foi considerado o primeiro grande livro reportagem sobre rock ‘n’ roll escrito por um brasileiro. Não é uma história afetada, em que Barcinski se coloca como um personagem herói vivendo experiências românticas e tresloucadas enquanto viaja o país assistindo a shows de rock. Pelo contrário. É, sim, uma série de textos-entrevistas, cada um com um artista ou banda, em que o jornalista apenas está ali no papel de quem relata uma situação.

Agora, 30 anos depois, Barcinski está relançando Barulho de maneira independente, com uma campanha de crowdfunding que dura até 30 de abril. O novo livro tem mais 60 páginas com fotos inéditas que ele fez entre 1988 e 1999, com astros como L7, Soundgarden, Alice in Chains, Hole e Black Sabbath. É também uma celebração de sua própria carreira com um dos grandes jornalistas culturais do país, que, além de biógrafo e guardião de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, também manteve por quase uma década o programa radialístico Garagem. André também é um dos criadores da Circuito Techno, uma das festas mais longevas do gênero ainda em atividade no país, e foi sócio do clube paulistano Clash, que soube mesclar muito bem rock e música eletrônica em suas noites sem fins em um galpão da Barra Funda.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

Nesta entrevista, falamos sobre os 30 anos de Barulho, seus tempos nos jornais e no rádio brasileiro, conversamos sobre música, é claro, e também contamos quais são os planos para o futuro de André Barcinski. Confira:

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André, eu queria começar lembrando que há 30 anos existia um negócio chamado jornalismo musical. Muita gente queria fazer, não dava tanto prestígio, mas pelo menos era divertido. Como foi, naquela época, fazer uma viagem tão maluca até os EUA e entrevistar os maiores nomes do rock ‘n roll?
Acho que eu peguei a última fase desse jornalismo musical e cultural. Na verdade, o jornalismo, cara… Eu cobri a Copa do Mundo, em 1994, as Olimpíadas, em 1996. Os jornais tinham grana para mandar jornalistas fazerem coberturas. Não é louco isso?

Era uma época que a gente ainda viajava bastante, tinha competição de Fórmula 1, muitos correspondentes e tal. Eu fui para a Argentina entrevistar o Neil Young antes de ele tocar no Rock in Rio; e para Londres entrevistar o Ronald Biggies [um notório ladrão inglês que viveu no Brasil], pago pela Folha! Claro que isso foi diminuindo ano após ano e hoje em dia não existe mais, né?

Você tinha 23 anos quando fez a viagem. Quais eram seus planos para essas entrevistas? Você queria vendê-las como reportagens ou sempre teve a ideia do livro?
Em 1991 eu já tinha trabalhado em quatro jornais. Comecei em 1987, com 19 anos, em uma revista chamada Ciência Hoje. Depois trabalhei por um tempo na Tribuna da Imprensa, e fui fotógrafo do Jornal do Brasil. Fiquei lá de 1988 a 1990, então fui para a Folha de S. Paulo. Em 1991, quando fui fazer o livro, já estava no Notícias Populares. Só 23 anos, e já tinha passado em quatro jornais diários.

Em janeiro de 1991, faço a cobertura do Rock in Rio para a Folha, e depois uma série especial sobre 15 anos de punk. Entrevisto um monte de gente, os Ramones, metade dos Sex Pistols, o Paul Simonon e o Mick Jones, do The Clash. Em maio, os Ramones vieram tocar pela segunda vez no Brasil, eu estava próximo do Joe, e o levei para fazer um programa de rádio durante uma noite inteira na Rádio Brasil 2000 com meu amigo André Forastieri. Ele foi depois do show, ficamos da meia noite às cinco e meia da manhã discotecando e contando histórias, foi um barato.

E aí ele falou que, se eu fosse aos Estados Unidos, deveria procurá-lo, que ele me colocaria em contato com algumas bandas. Levei aquilo a sério, beleza, tô indo. Então, convenci a redação da revista Bizz a pagar a passagem, nem lembro se foi inteira ou se racharam comigo.

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“Os Ramones vieram tocar pela segunda vez no Brasil, eu estava próximo do Joe, e o levei para fazer um programa de rádio durante uma noite inteira na Rádio Brasil 2000 com meu amigo André Forastieri. Ele foi depois do show, ficamos da meia noite às cinco e meia da manhã discotecando e contando histórias, foi um barato”

André Barcinski

O que eu conseguisse de matérias, publicaria por lá, mas não tinha a ideia de fazer um livro. Nem sabia que bandas eu iria entrevistar, cara! Era uma outra época, você marcava entrevista por fax, escrevia para as gravadoras e via quem estaria disponível. Eu fui com, sei lá, duas ou três entrevistas marcadas e um monte de promessas. Viajei por Nova York, Washington, Seattle, Chicago, São Francisco, Los Angeles e pela Califórnia, e só quando voltei que percebi que aquilo ali dava um livro, sabe?

Logo depois, no segundo semestre de 1992, me mudei para os Estados Unidos como correspondente do Jornal da Tarde. O livro saiu em 1993, e quando o ganhou o Jabuti, nem estava no país para receber o prêmio. Eu nunca vivi a repercussão que Barulho teve na época.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

Você sempre teve posicionamentos muito claros sobre as coisas. No livro, um exemplo são suas críticas ao Red Hot Chili Peppers. Quem te acompanha em qualquer momento da sua carreira percebe que suas opiniões sempre estiveram ali doam a quem doer. O mercado da música e da arte em geral nunca foi muito fã de críticas, né, André? O que isso te trouxe e te custou nesses 30 anos?
Queimar pontes é minha especialidade, digamos assim [risos]. Na verdade, a nossa profissão tem uma particularidade, né? Você escreve uma coisa há 20, 30 anos e tem que viver com ela pra sempre. Então, as coisas sobre as quais eu escrevi, as opiniões de 30 e tantos anos, às vezes não são as que eu tenho hoje.

Foi engraçado reler o livro, eu não tinha relido desde que havia saído. Tem muitas coisas ali que eu falo, que estou cobrindo, que hoje penso diferente. No livro, falo mal de Slint, e hoje, cara, é uma das bandas que eu mais ouço, sabe? É difícil, no calor do momento, tomar decisões com que terá que conviver pra sempre.

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Eu assumo um monte de coisas erradas. Pô, recusei um convite para entrevistar o Pearl Jam para o livro. A gravadora me ofereceu, não conhecia direito os caras, ouvi o disco, mas tinha um ingresso pra ver uma banda punk, o Alice Donut, na mesma noite. Não pensei duas vezes, dispensei o Pearl Jam [risos].

E você sustenta sua opinião sobre Blood Sugar Sex Magik?
Não, cara.. [risos] Nunca gostei dos Chili Peppers, mas acho Blood Sugar Sex Magic virou um disco fundamental na carreira deles. Foi o álbum que tornou eles em uma super banda. Astros. Mudei um pouco de ideia sobre o disco, acho um disco que é muito significativo na carreira deles, mas sempre achei puramente comercial, sabe?

Bom, pelo menos você conseguiu furar muitos discos com a Ana Maria Broca, né? Eu fico imaginando quanta gente não ficava esperando o final do Garagem, toda semana, só pra ver quem vocês iam sacanear. Como vocês escolhiam o que ia para a furadeira?
É, a gente fez isso. Mas, assim, é brincadeira, né? [risos] As pessoas, porra, levam muito a sério! É muito engraçado, eu nunca levei a sério quem falava mal de mim, nunca fiquei puto, entende?

Sei lá, o artista não gosta, a pessoa não gosta do que eu escrevi. Beleza, reclama lá no jornal, reclama na revista. No Brasil tem essa cultura de jornalista amigo de músico, músico é bacana, jornalista tem que ser amiguinho, e, porra, um saco isso, entendeu?

Tanto que não gosto nem de conhecer as pessoas, porque as pessoas são tão legais, os músicos, aí depois eu conheço… [risos].

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“Essa democracia digital está soterrando opiniões, tornando cada vez mais difícil escrever qualquer coisa contra grandes fenômenos de popularidade. Porque esses fãs, seja de filmes da Marvel, do BTS ou do Bruno Mars se juntam em milícias virtuais, e se você fala mal, cara, você é atacado de uma maneira tão absurda, isso te consome um tempo tão grande da sua vida que você prefere não escrever”

André Barcinski
André Barcinski
(André Barcinski/divulgação)

Eu venho de uma geração de jornalistas logo a seguir à sua, e tinha bastante gente inspirada no trabalho que vocês faziam, querendo continuar esse trabalho. Agora eu não vejo a geração atual com esse desejo de falar sobre música, sobre o underground. Parece, pra você, que a música deixou de ser importante de alguma forma?
Vejo isso com muita tristeza, porque acho que as redes sociais deram opinião pra todo mundo, diluindo a opinião de quem interessa. Hoje temos infinitos especialistas sobre todos os assuntos, mas eu não quero ler infinitos especialistas, e sim a Pauline Kael, o John Pareles, a Ana Maria Baiana. Não quero ler qualquer um.

O problema é que hoje, essa democracia digital está soterrando opiniões, tornando cada vez mais difícil escrever qualquer coisa contra grandes fenômenos de popularidade. Porque esses fãs, seja de filmes da Marvel, do BTS ou do Bruno Mars se juntam em milícias virtuais, e se você fala mal, cara, você é atacado de uma maneira tão absurda, isso te consome um tempo tão grande da sua vida que você prefere não escrever.

Essa semana, o A.O. Scott, que era o crítico de cinema do The New York Times, anunciou que tá saindo fora, que vai fazer outra coisa. Não aguenta mais, entendeu. Toda vez que ele fala mal desse filme TikTok que ganhou o Oscar [Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo], é bombardeado por milhares de e-mails. Vira uma coisa de gangue, uma mentalidade de linchamento.

Acho isso péssimo, e acho que é culpa da conjuntura mesmo. Os jornais perderam importância e força, enquanto toda informação via web é feita por algoritmos, sobre o que dá audiência. É um ciclo vicioso terrível. O que dá mais audiência vai para a homepage, o que está na home dá mais audiência, e isso é sempre uma matéria estúpida, um besteirol. Nunca é uma coisa analítica.

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Isso é muito ruim pra quem gosta de arte, de cultura, quer se informar, conhecer coisas novas e discutir com um pouco mais de profundidade.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

Você falou sobre filmes da Marvel. Adoro ler seus posts falando dos filmes que assiste com seu filho, às vezes algum clássico, outras vezes alguma produção nova. Me conta um pouco sobre esses momentos de ouvir música ou ver um filme com ele.
Não tem mais filme para adulto no cinema. É muito raro. Moro em uma cidade que, para ver qualquer filme que não seja da Marvel ou concorrente ao Oscar, preciso viajar literalmente 300 quilômetros. Ou vou para o Rio, ou para São Paulo. Assistimos muita coisa em streaming.

O que atrapalha é essa infantilização da cultura, da música, onde tudo é infantil. O filme que ganhou o Oscar é uma completa vergonha, né, cara? Uma coisa, assim, infantiloide. Parece um videoclipe, enquanto outros grandes filmes são tratados como chatices.

A gente tá vivendo numa regressão, cara. Um mundo infantil, burro. É uma coisa inacreditável. E é triste, para alguém que trabalha a vida inteira com cultura, que trabalhou em grandes jornais, em grandes cadernos culturais, junto com um monte de gente muito talentosa e muito culta. Você vê o que está acontecendo com o jornalismo cultural no Brasil hoje, no mundo em geral, é muito triste.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

O que você ouve hoje em dia, André?
Cara, eu ouço muita música. Tenho uma filha de 14 anos que todo dia me manda alguma coisa que está ouvindo. A cantora Mitski é a da vez. Até curto, assim, bastante.

Também ouço bastante coisa nova, mas basicamente as mesmas bandas. Gosto da psicodelia dos anos 1990 e 2000, que nasceu de uma praia do shoegaze inglês. Gosto de Brian Jonestown Massacre, Black Angels, Dive.

E tenho ouvido muito música africana, especialmente essas bandas do norte da África, que fazem uma mistura de rock com blues, assim, do deserto. São todas meio filhas do Tinariwen, que é a banda mais famosa, e tem o Bombino, um guitarrista de lá. O norte da África é um celeiro incrível de bandas.

“O que atrapalha é essa infantilização da cultura, da música, onde tudo é infantil. O filme que ganhou o Oscar é uma completa vergonha, né, cara? Uma coisa, assim, infantiloide. Parece um videoclipe, enquanto outros grandes filmes são tratados como chatices”

André Barcinski
Kurt Cobain, foto do livro
(André Barcinski/divulgação)

Quais seus próximos projetos?
Montei junto com o Leandro Carbonato, meu amigo, uma empresa de produção de shows chamada Mar. A ideia é fazer uns shows meio diferentes. Vamos trazer o Brian Jonestown Massacre com um show surpresa de abertura. Queremos mostrar que muitas vezes o público brasileiro não faz muita relação entre os artistas estrangeiros e os daqui.

Então, todo mundo fala que ama Brian Jonestown Massacre, mas você já ouviu Azymuth? A banda é brasileira, existe há cinquenta e tantos anos, são músicos disputados, toda a cena de jazz internacional ama os caras, é uma das influências do Brian Johnstown.

Quer dizer, tem uma relação aí que, às vezes, é impedida, não é concretizada, não é visualizada, pela total ignorância das pessoas em relação à música brasileira. As coisas maravilhosas que a gente tem e que são sempre deixadas de lado.

Cara, eu amo Tropicália, acho o Caetano foda, acho o Gil foda, mas, tem milhares de outros artistas que também precisam ser mais conhecidos. Não foi só a Tropicália que deixou coisas boas no Brasil. Tem um monte de artista foda, bandas foda… Ano passado morreu o Ruy Maurity, um cara que se as pessoas começassem a ouvir direito ele seria uma porra de um astro, entendeu? As músicas são maravilhosas, os discos são lindos, sobre cultura afro-brasileira e tal. Ele morreu e saiu uma notinha de três linhas nos jornais. Não tinha nenhuma festa pra ele.

foto do livro
(André Barcinski/divulgação)
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