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Quando o navio do capitalismo afunda

Os pilares do Ocidente são discutidos pelos seus favorecidos no surpreendente e instigante filme "Triângulo da Tristeza"

Por João Victor Guimarães
28 fev 2023, 11h59

São poucas, talvez raras, as obras feitas pelos príncipes e princesas do Norte revoltados com o imperialismo que realmente conseguem manifestar coerência, criatividade e potencial de autocrítica inteligível a um grande público.

Com um roteiro surpreendente, o vencedor da Palma de Ouro de Cannes Triângulo da Tristeza nos guia por uma narrativa com estruturas pouco simples e consideravelmente incomuns, infelizmente. No filme, não são as personagens, mas o próprio universo fílmico que se expande cada vez mais. Desde a primeira cena, o público é instigado a adentrar o frívolo das intimidades, as quais raramente temos acesso. As surpresas escalam muito cuidadosamente sem que a direção, assinada pelo sueco Ruben Östlund (o mesmo de The Square – A Arte da Discórdia), perca a hora do recuo. Quando, após um precioso tempo, a tensão vence a escalada e se instaura, ela consegue ser diluída em riso, romance e maré baixa. Na segunda escalada, o mesmo acontece. Já na terceira… Bom, aí já estamos prontos para o grande embate. Isso porque o filme utiliza estruturas/artifícios de pequena, média e grande proporção para estabelecer os vínculos com o público através das várias ambientações.

Cena do filme Triângulo da Tristeza
(Diamond Films/divulgação)

Ora, conhecemos um rapaz branco e loiro numa situação e em um ambiente de aparente futilidade. Depois o vemos com sua namorada branca, loira, magra, jantando, quando surge a primeira tensão: o rapaz apresenta ideias incomuns às que imaginamos dominar ambientes como aquele, tomado por pessoas ricas e estúpidas. É o início da escalada que resulta na explanação de toda a podridão. Para a surpresa de quem assiste, o que verdadeiramente acontece e se mostra não é apenas uma progressão narrativa dos fatos e imagens numa tela, mas sim uma progressão também discursiva e ideológica que, como em raros filmes dessa natureza e origem, consegue reduzir as barreiras e tratar de temas comuns ao Norte e ao Sul do mundo, ao mesmo tempo talvez porque se concentra apenas em “falar da sua aldeia”, como indicava Tolstói. É ao encarar suas próprias questões com coragem que o filme as universaliza.

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Em um ato de coragem e fé diante do seu futuro patrão, o comandante do navio diz: “Meu governo assassinou Martin Luther King, Malcon X, Bobby Kennedy, John F. Kennedy. Meu governo derrubou líderes bons, honestos e democráticos do Chile, Venezuela, Argentina, Peru, El Salvador, Nicarágua, Panamá e Bolívia. Junto à Grã-Bretanha, partimos o Oriente Médio, criando fronteiras geográficas artificiais e instalando ditadores fantoches. A guerra se tornou nossa indústria mais lucrativa. A cada bomba lançada, alguém ganha um milhão de dólares…”. Embora se note a falta de menção à orquestração da ditadura implantada no Brasil, essa cena mais parece premonitória, parece sinalizar a coragem necessária para contornar a tempestade que ameaça o barco. No entanto, mais forte que a esperança vinda das palavras, somente a que vem das evidências. Triângulo da Tristeza consegue radiografar crises que afetam diretamente a juventude e sinaliza que é ela, ou nós, o porvir do transformar. E jovem é tudo aquilo que se encoraja.

Cena do filme Triângulo da Tristeza
(Diamond Films/divulgação)

Pode-se “acusar” o filme de idealista por propor que o tiro que afundará o barco dos algozes sairá de dentro das suas fábricas. Mas algo no filme afirma que tais algozes também são idealistas porque, enquanto chefiam a manutenção de símbolos que lhes perpetuam e favorecem, assistem o mundo entrar num desastre e creem na ida a Marte como livramento. Somos todos e todas pessoal ou socialmente idealistas. Triângulo da Tristeza assume isso junto com possíveis soluções genial e sutilmente apontadas. O filme em questão compõe o panteão das produções que nas últimas décadas foram capazes de sinalizar de forma assertiva o obstáculo que a burguesia é para o progresso.

Cena do filme Triângulo da Tristeza
(Diamond Films/divulgação)

Diante de questões tão caras, apontamentos técnicos se tornam quase irrelevantes visto o que o filme gera sem grandes falhas e entraves. A montagem é afiada e precisa, sabe quando nos deixar de fora, algo que em muitos casos só é atribuído à fotografia que, no filme em questão, definitivamente decide ser absoluta e fiel aliada do roteiro. O som pode resumir o que já disse sobre demais departamentos e sobre o filme: tudo sabe escalar a montanha. A mixagem nos proporciona ironias que resultam num incômodo precioso. Um piano toca em contraste com a revelação da podridão antes disfarçada de elegância. A festa em contraste com o desespero. Triângulo da Tristeza aponta incoerências capazes de despertar o riso em quem assiste o fim desse velho mundo.

Cartaz do filme Triângulo da Tristeza
(Diamond Films/divulgação)

Triângulo da Tristeza estreia no Amazon Prime Video em 3 de março.

Triângulo da Tristeza

Direção: Ruben Östlund
2022 – Suécia, França, Grécia, Dinamarca – 142 min

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