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Como foi a campanha de Marte Um pelo Oscar

Assim que foi anunciado que o filme representaria o Brasil para uma vaga no Oscar, Gabriel Martins iniciou uma enorme luta para entrar entre os finalistas

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 19 fev 2023, 22h22 - Publicado em 17 fev 2023, 09h40

Conseguir uma indicação ao Oscar custa caro. E envolve uma longa campanha para fazer com que o filme seja visto pelos membros da Academia. Fazer um bom filme é apenas uma primeira etapa. Mas, para muito além disso, é necessário estar disposto a fazer politicagem, investir em publicidade e arcar com os custos disso. Quando a conversão é do real para o dólar, imagine só, a tarefa se torna muito mais onerosa.

A última vez que um longa brasileiro foi indicado a Melhor Filme Internacional foi há 24 anos, com Central do Brasil, de Walter Salles. Naquele mesmo ano que uma atriz brasileira, nossa dama do teatro Fernanda Montenegro, concorreu a Melhor Atriz, ao lado de Meryl Streep e Cate Blanchett. E foram derrotadas por Gwyneth Paltrow. Seria o nosso primeiro 7×1?

Para 2023, havia alguma expectativa de que o Brasil fosse novamente representado dentro das principais categorias por Marte Um, do cineasta mineiro Gabriel Martins. Gabito, como é conhecido, é natural de Contagem, uma cidade a menos de 20km de distância de Belo Horizonte. Embora seja jovem, ele está longe de ser amador na indústria do audiovisual. Mais da metade de seus 35 anos foram dedicados ao cinema.

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Em 2009, criou com André Novais Oliveira, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Correia a produtora Filmes de Plástico e já esteve envolvido na direção de 12 produções. Apesar disso, não passava pela sua cabeça, de início, que Marte Um seria considerado a entrar na corrida pelo Oscar, mas ele estava consciente da empreitada que teria que fazer para conseguir uma vaga como um dos finalistas.

Em artigo para o site norte-americano Vox, a crítica de cinema Alissa Wilkinson detalha alguns dos requisitos (não declarados) para se tornar um bom candidato à disputa e compara a campanha do Oscar à presidencial norte-americana. Há, de fato, algumas semelhanças. Em entrevista à revista Variety, a atriz Susan Sarandon fez a mesma analogia. “As campanhas são enormes… são tão longas quanto uma campanha presidencial”, disse ela. E expressou o desejo de uma reforma nesse estilo de campanha. “É uma sorte você estar em um filme que tenha alguém disposto a gastar milhões de dólares [em campanha]”, disse também.

Neste ano, novamente a campanha deu o que falar, mas não exatamente pelos motivos óbvios. Andrea Riseborough, indicada a Melhor Atriz por To Leslie, filme independente com poucos recursos para fazer uma campanha convencional, por pouco não teve sua indicação revogada. O motivo? Muitos atores e atrizes começaram a lembrar de seu nome pelas redes sociais, elogiando a atuação de Andrea e pedindo sua indicação. A Academia ameaçou, mas por fim manteve a indicação.

Nos últimos meses, Gabriel Martins teve a chance de navegar por este universo de Hollywood e coletou algumas impressões. Marte Um não entrou como um dos finalistas, embora tenha tido uma boa circulação internacional. “O que poderia ter feito a diferença?”, eu pergunto. Gabriel é categórico: “Entendemos nesse processo que a gente precisava de muito mais dinheiro para fazer barulho.” Confira nossa entrevista com ele:

Gabriel, gosto sempre de perguntar sobre o início da trajetória. Quero te perguntar sobre a campanha pelo Oscar, mas adoraria escutar sobre seu passado. Então: como nasceu sua relação com o cinema?
Tenho vontade de fazer filmes desde que era criança. É um desejo que não sei especificamente de onde veio, onde começou, mas sei que desde os seis, sete anos, era o que eu queria fazer. Eu assistia bastante televisão, meus pais me levavam até ao cinema para ver desenhos. Assistia aos filmes dos Trapalhões, até filmes para adultos mesmo. Gostava muito de ver bastidores de filmes e ficava particularmente encantado com isso.

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Retrato de Gabriel Martins.
Gabriel Martins (Gabriel Martins/arquivo)

Um dos eventos mais marcantes para mim foi com quando eu estava com doze anos e fui para quarta Mostra de Cinema de Tiradentes, uma cidade perto de Contagem. Foi a primeira vez que fui ao festival e lá fiz duas oficinas de cinema. Em uma delas a gente fez um filme com uma equipe bem pequena e eu achei aquilo o máximo, fiquei encantado. Foi a primeira vez que tive contato com o cinema brasileiro, que era um pouco diferente do que eu estava acostumado.

Lembro de ver uma sessão na praça do filme Bicho de Sete Cabeças, da Laís Bodanzky e me lembro de ficar impactado. A praça estava muito cheia e eu assisti ao filme sentado no meio-fio, vendo a tela meio de lado. Foi uma experiência muito marcante. Depois disso segui com muita vontade de fazer cinema.

O que te deslumbrava no cinema? O que você acha que tinha nesse universo que você gostaria de experimentar?
Era bem especificamente uma pergunta: como que se faz essas imagens que estão na tela? Como que isso é possível de existir? Então era uma coisa muito relacionada ao artesanato da coisa, como você junta tudo e aquilo resulta em uma cena que provoca emoções tão fortes, a ponto de parecer que é uma coisa real?

Até hoje vou ao cinema muito pela experiência de sentar e ser deslumbrado por esse universo de sonho. Tenho muito fascínio com o cinema, quase como um lugar religioso assim para mim. Eu gosto muito de tudo, desde cinema blockbuster até filmes mais experimentais, eles me apetecem num nível semelhante.

E essa paixão é tão voraz que eu meio que já fiz todas as funções no cinema em algum momento. Sou montador, fotógrafo, diretor, roteirista e também produtor. Já fui crítico de cinema, curador de festival, já fiz som, já fiz parte de equipe de arte. Fiz muitas funções por essa curiosidade pelo artesanato do cinema.

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Sequência da família de Marte Um olhando para o Céu.
Sequências da família de Marte Um. (Filmes de Plástico/divulgação)

E para contextualizar, como que nasceu o projeto de Marte Um?
Ele começou a ser escrito um pouco após a Copa de 2014, muito pensando esse mito do futebol no Brasil. O primeiro personagem que aparece na minha cabeça é o Deivinho, entendendo como esse garoto com o potencial para se tornar uma futura estrela no futebol, talvez o próximo Neymar, mas o seu sonho tem a ver com uma coisa mais expandida; o espaço, a exploração em Marte. E aí quando me veio essa ideia desse garoto olhando para as estrelas, me pareceu que dentro desse sonho do Deivinho tinha algo muito interessante a se dizer sobre a sociedade brasileira. Então comecei a pensar sobre a família dele, quem seriam, e nisso esses sonhos começaram a amplificar e junto desses sonhos outras demandas e desejos que essa família poderia ter. Me veio a vontade de fazer um filme em que esses quatro personagens da família tivessem uma importância mais ou menos igual. Aí foram nascendo meio que organicamente. Me inspirei em pessoas que passaram pela minha vida ou estão próximas a mim e entendendo muito o que é essa ideia de ter fé e de ter sonho no Brasil, de ter resiliência num país como o nosso.

Início de ano e de governo, reconstrução do Ministério da Cultura, não posso deixar de perguntar: o que você acha que precisa ser melhorado em termos de políticas públicas para o audiovisual?
Acho que estamos vivendo uma reconstrução de algo que foi retirado, de recursos que foram retirados. Esse é um passo que já está sendo dado, mas que vai tomar um tempo. Acho que entendendo que esse caminho já está sendo colocado de forma orgânica, o próximo passo é entender o investimento de recursos como algo fundamental. E retomar um pensamento de descentralização da renda, de arranjos regionais, políticas de cotas, de ação afirmativa, entender a multiplicidade das identidades que estão por trás das câmeras no Brasil. Precisamos contemplar essa diversidade do cinema brasileiro, que apesar de muito rico, também excluiu muitas identidades.

“Tudo indicaria que a campanha foi bem sucedida, mas entendemos nesse processo que a gente precisava de muito mais dinheiro para fazer barulho, ter mais publicidade. Por exemplo, um dos filmes que estava concorrendo, como “Nada de Novo no Front”, da Netflix, tinha propaganda em todos os metrôs de Nova York, tinha outdoor na rua. Entre o nosso filme e esse, ele vai”

Gabriel Martins

Acho que dos muitos golpes que a cultura levou, que o Bolsonaro realizou com muito respaldo de parte da opinião pública, é a ideia de que esses recursos não são necessários e de que empregar recursos públicos na cultura não é importante. Muitas pessoas ainda acreditam que o cinema brasileiro tem que ser financiado só por vias privadas, sendo que é necessário ter mais investimentos em distribuição de filmes, em sessões públicas. Um sonho é ter salas públicas de cinema, com sessões gratuitas de filmes em cartaz, não somente mostras. Precisamos fomentar esse desejo na sociedade.

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É uma construção que não se dá só na linha de frente. Isso precisa ser feito com uma educação na sociedade para consumir cinema brasileiro, porque o cinema brasileiro independente não chega na casa das pessoas via televisão. E acho que isso precisa ser discutido porque as pessoas querem se ver, querem ver a realidade delas espelhadas.

Finalmente, o Oscar. Me conta como foi fazer essa campanha. Em que momento perceberam que seria importante fazê-la?
Quando recebemos a notícia de poderia ser esse o filme [a representar o Brasil no Oscar], a gente não estava pensando sobre isso e entendia isso como algo fora da nossa realidade. Apesar de que Marte Um faria sentido [entrar], pois teve um circuito basicamente americano, com um agente de vendas americano. Na prática, faria sentido ele ser escolhido dentro das levas de filmes, pois era uma obra que já estava com alcance nos EUA.

Cartaz de divulgação do filme Marte Um.
Cartaz de divulgação de Marte Um (Filmes de Plástico/divulgação)

Foi um aprendizado muito grande porque é entrar num terreno que demanda uma postura que não necessariamente a gente está acostumado a ter. Estava conversando com o Aly Muritiba, escolhido em 2021 por Deserto Particular, falamos brevemente sobre essa questão da campanha e como não entendemos muito bem esse lugar do lobby no cinema. Dito isso, acho que fizemos uma boa campanha. Conseguimos angariar recursos em um tempo de três, quatro semanas. Tudo era feito em dólar, tivemos que contratar uma equipe americana de relações públicas. Nosso time era essa equipe, a Magnolia Pictures, eu, Thiago e todo nosso elenco. É um trabalho que significa, basicamente, fazer sessões, tentar cavar publicidade para o filme e fazer circular o nome dele entre os votantes da Academia.

E o que você tirou dessa experiência?
Passada a campanha, eu entendi que vai muito além do filme ser bom ou não. Todas as nossas sessões foram bem sucedidas. Fizemos duas sessões em Los Angeles, uma em Nova York, uma em Londres e depois uma última em Los Angeles. Isso tudo no período de um mês. Todas as sessões estavam cheias, com as pessoas ficando para a recepção depois. Nessa época, em Hollywood, as pessoas vão para muitos eventos como esse porque muitos filmes estão fazendo campanha para as premiações. Então estamos competindo atenção com muitos projetos, projetos muito maiores do que o nosso. Tudo indicaria que a campanha foi bem sucedida, mas entendemos nesse processo que a gente precisava de muito mais dinheiro para fazer barulho, ter mais publicidade. Por exemplo, um dos filmes que estava concorrendo, como Nada de Novo no Front, da Netflix, tinha propaganda em todos os metrôs de Nova York, tinha outdoor na rua. Entre o nosso filme e esse, ele vai. Simplesmente porque está sendo mais visto, sendo mais falado. Vai muito além de ter feito um bom filme, são muitas circunstâncias e nem todas a gente controla.

Deivinho, personagem interpretado pelo ator Cícero Lucas.
Deivinho, personagem interpretado pelo ator Cícero Lucas. (Filmes de Plástico/divulgação)

E como foram as discussões em torno do filme?
Uma preocupação que tivemos foi dedicar parte do nosso tempo de levar o nome do cinema brasileiro junto. Todas as entrevistas que dei e que ainda dou são para trazer atenção a um cinema que não é tão conhecido nos EUA. Acho que ainda existe para muitas pessoas, no mercado americano, uma imagem de Cidade de Deus, de Central do Brasil, filmes de mais de vinte anos atrás. Tem um processo de construção e, claro, de conseguir fontes e parcerias que se faz necessário. Muitos não conhecem Kleber Mendonça Filho. Temos mais uma tradição de [participar] de festivais europeus e menos trocas com os EUA.

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Acho que levar o nome do Brasil com o filme é tornar mais amplo o entendimento desse mercado brasileiro, e cavar a possibilidade de mais parcerias, mais interesses e fazer com que o nosso cinema, de alguma forma, se torne um pouco mais amplo. O que posso dizer é que, desde o momento que Marte Um foi selecionado para representar o Brasil, isso impactou muito na nossa bilheteria e na atenção para o filme.

Sequência do filmes Marte Um.
Sequências do filmes Marte Um. (Filmes de Plástico/divulgação)

Você sente que teria feito algo diferente agora que sabe como funciona a campanha?
Não sei até que ponto daria para pensar no que eu faria diferente. Uma coisa que seria fundamental seria conseguir uma distribuição antes, de o filme ter passado em mais festivais. Só que isso não está no nosso controle. A gente estreou em um grande festival, em Sundance, o filme circulou bastante. Ficamos o ano inteiro tentando uma distribuição e só apareceu agora, no final. O filme estar atrelado a uma distribuição anteriormente me parece fundamental nessa campanha, mas isso não é algo que temos controle.

A gente precisaria de mais dinheiro, mas não conseguimos. É fundamental ter grana para conseguir fazer barulho. Só um anúncio na página da revista Variety custa $8 mil.

A gente tinha a equipe de relações públicas e de sales agent. Conseguimos apoio de várias instituições simpáticas, que se aproximaram. Não estávamos sozinhos, muitas nos apoiaram, mas nós que fomos atrás e fomos aprendendo como fazer enquanto a gente fazia.

Qual era o orçamento necessário?
Nós fizemos uma conta de $250 mil dólares para campanha, mas não conseguimos esse dinheiro. Conseguimos uma quantia expressiva, próxima dele. Mas esse era um valor que contamos como base, para ser minimamente competitivo. Para fazer uma campanha ideal teria que ser o dobro disso. Como conseguir $3 milhões em três semanas? Precisaria de todo mundo juntar esforços, conseguir recursos do governo. $200 mil dólares era um recurso que o governo dava há muitos anos (através da Ancine), mas isso não foi corrigido. Hoje em dia, o dólar está muito mais caro. O que realmente atrapalha é o fato do dólar estar muito alto. Há alguns anos essa campanha seria mais viável.

Cena do filme Marte Um.
Cenas do filme Marte Um. (Filmes de Plástico/divulgação)

E quanto você acha que essa experiência impactou sua carreira? Inclusive de oportunidades de agenciamento, que já teve, mas também possibilidade de mais parcerias para o futuro.
Impactou muito, sem dúvida. Não tem nada que já aconteceu diretamente, não consegui grana para um próximo filme, isso não aconteceu. Mas sem dúvida existe o interesse de várias pessoas naquilo que eu vou fazer no futuro, no tipo de ideia e em como posso ser apoiado. Me sinto mais amparado do que eu estava antes de o filme ser lançado porque agora há mais interesse na minha voz e na voz da minha produtora. Para além desse lugar do mercado, tanto nos EUA quanto Brasil, existe um público, pessoas do cinema brasileiro que estão me acompanhando. Antes de Marte Um, o máximo de bilheteria que conseguimos foi em torno de 10 mil espectadores, e Marte Um já está quase com 90 mil. Só esse pulo de quase 10 vezes do meu filme anterior já mostra que existe uma atenção maior, que é uma semente muito importante para o futuro.

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