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Joelma Oliveira Gonzaga: ‘Produtores estão deixando a alma no streaming’

Secretária do Audiovisual, do Ministério da Cultura, conversou com a Bravo! sobre prioridades desta gestão e desafios de negociação com as empresas

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 5 dez 2023, 16h00 - Publicado em 4 dez 2023, 13h55

Quando a Secretaria do Audiovisual, Joelma Oliveira Gonzaga, foi empossada no Ministério da Cultura, não havia dúvidas sobre quais deveriam ser as prioridades do órgão que estava prestes a assumir. Com uma carreira de mais de 20 anos como produtora executiva, representando produtoras independentes, ela conhecia a fundo as disputas dos criadores com as plataformas de streaming. Em setembro deste ano, quando participou dos debates promovidos pelo CineMundi, no Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte, ela não se inibiu em dizer o que pensa. “Eu venho do mercado [audiovisual]. Como produtora executiva, negociei muito com a Netflix e com a Amazon. Os produtores brasileiros estão deixando a alma com essas plataformas. Não existe nenhuma flexibilidade, é uma relação abusiva para o produtor e para os atores. Tem muitos casos de artistas tendo crises de ansiedade por causa dessa relação com o streaming. É nociva. Regular é básico.”

A secretária lembrou que essa discussão remonta a 2013, um período de crescimento, mas ainda incomparável ao que os streamings vivem atualmente, especialmente após a pandemia e a criação de outros serviços, como a HBO MAX, Apple TV, Prime Video, Disney + e tantas outras. Joelma destaca dois possíveis ganhos com essa regulação legislativa: a contribuição ao audiovisual brasileiro por meio da tributação para o CONDECINE (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) e a proteção intelectual dos artistas, que até o momento não possuem controle sobre o destino de suas obras. As discussões, entretanto, não estão sendo fáceis. Segundo ela, há muita resistência por parte de parlamentares, além da pressão das empresas que oferecem esse serviço.

Enquanto isso, na contramão do Brasil, outros países, já criaram regras para que as empresas operem em seus territórios. Para Joelma, não se trata de dificultar os investimentos estrangeiros no Brasil, mas estabelecer um limite para que a relação seja benéfica para a empresa, para o país e para os artistas. “É muito importante que em algum momento tenhamos um programa de atração de investimentos, obviamente, tendo todo o nosso setor regulado. Os países com grandes programas de investimentos já estão regulados. Senão o Brasil vira esse grande produtor de serviços, mas sua soberania e sua identidade vão para fora.”

Um dos projetos em tramitação na Câmara (PL 8889/2017, do atual Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, do PT) prevê também uma cota de produções nacionais no catálogo da operadora. No caso de empresas que tenham receita bruta anual acima de R$ 70 milhões, a cota deve ser de ao menos 20% das obras do catálogo. A título de exemplo, apenas a Netflix teve uma receita aproximada de $31,6 bilhões em 2022, segundo dados da Statista. Desse total, cerca de $4,07 bilhões se devem a operações na América Latina. Para empresas desse porte, o projeto também prevê contribuição progressiva de 4% da receita bruta anual, destinada à CONDECINE. Uma das funções desse tributo é alimentar o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

A Bravo! conversou com a secretaria sobre os balanços do primeiro ano frente ao cargo, os desafios do audiovisual nacional, o desejo de internacionalizar o cinema brasileiro e, claro, a regulação do VoD (Video on Demand/Vídeo sob Demanda). 

Secretária, esse primeiro ano praticamente já se foi. Quais foram os desafios enfrentados neste período inicial de gestão e como pretende abordá-los nos próximos anos?

Enfrentamos seis anos de desmonte, nos quais políticas públicas estruturadas foram descartadas. Ao chegar na Secretaria, minha primeira ação foi dialogar com os servidores que ainda estavam na casa, os que resistiram. Houve muita perseguição e assédio, e eles estavam bastante assustados. Muitos foram para outros lugares, mas tomei a iniciativa de trazer de volta os servidores da SAv (Secretaria do Audiovisual). Era importante que fossem acolhidos primeiro. Foi gratificante ver a ansiedade e felicidade pela renovação.

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O Ministério foi reduzido a uma Secretaria, então ainda estamos trabalhando nessa reestruturação, com muitos avanços e entregas. Passados 8 meses, posso dizer que estamos percorrendo um caminho ótimo. Estruturamos nossas políticas a partir de um processo de ampla escuta, análise, planejamento estratégico e de respostas às demandas do setor. Com isso, a SAv vem apresentando programas e projetos que passam pela articulação com a educação básica, profissionalização para o trabalho e fomento.

Estamos pensando em chamadas públicas para desenvolvimento e distribuição. Lançamos um grande programa de curta-metragem voltado para quem está começando. Também instituímos um prêmio de incentivo a formandos em cinema, rádio e TV. Estamos dando atenção especial aos iniciantes e à inserção e permanência, reconhecendo as políticas públicas da Secretaria por mais de 30 anos. Não precisamos reinventar a roda, temos muitas políticas exitosas que estamos revisitando e trazendo de volta. O Curta Criança, por exemplo, é uma política que teve muito impacto para o audiovisual brasileiro. Agora trouxemos de volta, assim como o curta para mulheres e o Curta Afirmativo – Bolsa para Produção de Curta-Metragem. Os desafios ainda são grandes; o Ministério está trabalhando com uma força de trabalho 20% menor, mas ainda assim estamos reconstruindo, integrando e fazendo entregas significativas para a sociedade.

Qual a senhora considera ser a questão central mais urgente para o audiovisual neste momento?

A regulação do VoD. O streaming é a principal janela atualmente do audiovisual. O Brasil é um dos principais consumidores, sempre no top 3. Na Netflix, é o segundo consumidor, e esse mercado ainda não foi regulado.

Quais são os principais desafios enfrentados na regulamentação do streaming e como a Secretaria planeja abordá-los? 

O que acontece hoje é que essas plataformas atuam no Brasil, mas ficam com nosso patrimônio intelectual. As produtoras tornam-se apenas serviçais de suas produções, pelas quais passaram anos criando. O streaming entra, coloca o dinheiro e torna-se dono daquele patrimônio. Isso não é justo. Qualquer marco regulatório do fomento precisa começar protegendo o direito autoral e patrimonial das produtoras brasileiras independentes. Vamos garantir uma simetria regulatória com o ecossistema que já existe no Brasil do audiovisual. A regulação do cinema também precisa garantir que as plataformas recolham impostos, paguem uma alíquota que chamamos de CONDECINE para VoD e seja superior a 4%. Isso está em consonância com o que é operado no mundo. A França, por exemplo, tem 5,5%. Portugal tem 4%.

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(Filipe Araújo / MinC/divulgação)

Atualmente, elas não pagam a CONDECINE?

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Não, não pagam nada. A Secretaria liderou um grupo de trabalho sobre a regulação do VoD. Nos dedicamos por quase três meses na análise dos marcos regulatórios mundiais do VoD. Buscamos contribuições da FIBRAv (Frente da Indústria Independente Brasileira do Audiovisual), composta pelas principais entidades audiovisuais do país, incluindo produtores independentes, para entender como seria uma regulação eficaz. Esse grupo contou com a participação da Ancine (Agência Nacional do Cinema), da Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual e da Secretaria Executiva do Ministério da Cultura. O resultado desse esforço está disponível no site do Ministério da Cultura, onde defendemos um sólido marco regulatório para o audiovisual que proteja essa indústria.

Nossa proposta visa proteger o patrimônio intelectual nas mãos das produtoras independentes, estabelecer cotas de catálogo, aplicar uma alíquota de imposto progressiva e superior a 4%, garantir investimento direto, e promover transparência nos dados. Atualmente, enfrentamos a falta de dados. Participamos de uma audiência pública no Senado, apresentando esses pontos e defendendo a posição do Ministério da Cultura nessa batalha.

“Assim como ocorreu com a TV paga e todos os marcos regulatórios, enfrentamos uma forte resistência de diversos interesses. No entanto, vamos lutar até o final para proteger a indústria do audiovisual brasileira”

Entramos atrasados neste assunto, não é?

Já passou da hora de regular, e já possuímos maturidade suficiente para isso. Essa discussão não é recente, remonta a 2017, quando já era debatida no Conselho Superior do Cinema. Vários países já regulamentaram, e o Brasil, que proporciona para essas plataformas gigantescas, tem o direito de exigir sua contribuição, seu pagamento de impostos. Precisamos proteger a indústria do audiovisual brasileira contra a atuação predatória dos streamings.

Quais são os desafios na discussão com as plataformas?

O desafio reside no fato de que elas não querem regulação ou desejam uma regulação que atenda apenas aos seus interesses. Nesse grupo, também ouvimos as principais plataformas de VoD, iniciando a discussão deixando claro que vamos regular, conforme previsto no plano de governo. Isso é uma prioridade do Ministério da Cultura, conforme destacado pela ministra Margareth Menezes. Precisamos proteger e entender os termos. Ao apresentar os termos, elas mostram resistência.

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No Senado e na Câmara, existem três projetos de lei (No Senado, os PLs 2331/22 e 1994/23, e na Câmara, o PL 8889/17). Um deles defende que a alíquota de imposto seja apenas de 1%, com desconto de 70%. Parece que as plataformas ainda não compreenderam a necessidade e a importância da regulação. Precisam entender que essa regulação deve ser justa para a indústria audiovisual brasileira, seguindo os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Cultura, a autoridade neste assunto. As recomendações presentes no relatório são básicas e não apresentam nada extraordinário, seguindo práticas adotadas em outros países, mesmo aqueles com audiência menor que a do Brasil.

Esse parecer ser um lobby poderoso.

Muito. Assim como ocorreu com a TV paga e todos os marcos regulatórios, enfrentamos uma forte resistência de diversos interesses. No entanto, vamos lutar até o final para proteger a indústria do audiovisual brasileira.

E quais modelos internacionais devemos nos inspirar?

Nós observamos de perto o modelo da França, de Portugal e da Espanha. Estudamos esses marcos regulatórios, mas compreendemos que nosso país é muito diferente. Imagine: a França tem o tamanho de Minas Gerais, talvez. O Brasil é continental. Inspiramo-nos nesses modelos, adaptando-os à realidade do nosso país. O marco regulatório precisa considerar a regionalização, observar o que o Norte, Nordeste E Centro-Oeste produzem. É fundamental ter políticas afirmativas que garantam diversidade e acessibilidade. Essas são premissas defendidas pelo Ministério da Cultura, pelas políticas públicas do Brasil, pelos governos Lula e Dilma, e agora de Lula, novamente.

Poderia explicar um pouco mais a questão da proteção do marco regulatório?

Este é o primeiro ponto. O marco regulatório só será benéfico para o Brasil se tiver como base a proteção dos direitos patrimoniais. As produtoras brasileiras independentes devem deter o patrimônio de suas obras. A discussão precisa começar por aí. Ouvimos muitos comentários sobre séries nacionais de sucesso, mas a série não é brasileira no sentido de que os direitos não pertencem às produtoras brasileiras. Embora o conteúdo e o elenco sejam brasileiros e pensados por brasileiros, o brasileiro não possui direitos patrimoniais sobre esse conteúdo. Isso não faz o menor sentido.

O que isso significa para os criadores a longo prazo?

Se o direito patrimonial não pertence à produtora independente que criou a obra, o streaming continuará vendendo o conteúdo em qualquer país do mundo, sem que o criador receba qualquer compensação por isso.

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“Atualmente, registramos menos de 2% de ocupação das salas de cinema. Existe uma concorrência predatória; por exemplo, se um filme como “Barbie” é lançado, ele ocupa indiscriminadamente todas as salas, deixando nossas produções sem espaço.”

Tampouco, o Brasil, na forma de impostos?

Também não. O direito patrimonial precisa permanecer nas mãos das produtoras independentes.

Mas essa parece ser uma questão óbvia, já que se trata do interesse nacional. Quais são os contra-argumentos na Câmara?

Eles não compreendem dessa forma. Acreditam que, ao investirem dinheiro, a obra pertence automaticamente a elas [plataformas de streaming].

E temos a grande questão da Cota de Telas. O que é necessário para atender às necessidades do nosso audiovisual no contexto atual?

Primeiro, considero um equívoco a não renovação da cota de telas na última gestão. Essa política existe no ecossistema audiovisual brasileiro desde os anos 1930 e é crucial para garantir a presença de nossos filmes nas salas de cinema. É algo fundamental. A última gestão não demonstrou interesse nesse aspecto, resultando na expiração da cota de telas. Tivemos uma vitória recente na Câmara, onde o PL foi aprovado e agora segue para o Senado. O Ministério não está medindo esforços para trabalhar nessa cota de telas. A proposta inclui uma extensão até 2033, assegurando, no mínimo, que nossos filmes tenham espaço, o que é um direito constitucional. No dia da aprovação da cota de telas, destacamos no Ministério que é necessário celebrar essa medida. Embora ainda haja um passo a ser dado no Senado, já podemos comemorar essa vitória significativa.

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(reprodução/reprodução)

Por que ela não está sendo cumprida?

Ela não está sendo cumprida porque não está mais em vigor. Atualmente, registramos menos de 2% de ocupação das salas. Existe uma concorrência predatória; por exemplo, se um filme como “Barbie” é lançado, ele ocupa indiscriminadamente todas as salas, deixando nossas produções sem espaço.

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A cota está vencida desde 2021, poderia ter sido renovada, mas não houve interesse na última gestão. O restabelecimento dessa cota é uma meta do Ministério da Cultura.

Outro ponto é a Lei Paulo Gustavo, há muita expectativa para as produções que estão sendo beneficiadas por ela. O que vocês têm notado desde a aprovação?

O maior aporte da Lei é para o audiovisual, quase 3 bilhões espalhados pelo Brasil inteiro. Houve uma adesão muito significativa, com 98% dos municípios brasileiros aderindo à lei. O governo repassa o dinheiro para estados e municípios. Alguns estados estão finalizando o processo agora. Grande parte desse recurso foi destinada à produção, o que resultará em um aumento significativo de filmes nos próximos anos. A Lei Paulo Gustavo promoveu uma verdadeira revolução na Cultura. Também está em vigor a Lei Aldir Blanc 2, uma lei estruturante.

Ela também precisará ser atualizada como a Lei de Cotas? Ou seja, estará à mercê do próximo governo?

Sim, ela tem garantia de 5 anos.

Quais iniciativas específicas foram implementadas para promover a diversidade e inclusão na indústria audiovisual brasileira, especialmente em relação a pessoas pretas e indígenas?

Não dá para pensar em política pública cultural brasileira sem considerar o tripé de promoção da equidade: diversidade, regionalização e acessibilidade. Toda política cultural deve contemplar a população negra, indígena e ribeirinha, considerando a extensão do nosso Brasil. É essencial incluir as mulheres. Essa é uma pauta prioritária. A regionalização também é crucial; precisamos descentralizar os recursos. A Lei Paulo Gustavo faz isso muito bem. É fundamental garantir que o Norte, Nordeste e Centro-Oeste tenham acesso aos recursos. Tivemos exemplos extremamente bem-sucedidos nos últimos anos, como o filme “Noite Alienígenas” (de Sérgio de Carvalho), o primeiro a acessar recursos do Acre. Temos Kleber Mendonça Filho, que a cada ano lança um filme novo. Sem políticas públicas, esses filmes não existiriam. Precisamos promover e fomentar isso em escala nacional.

Quais são as perspectivas e planos da Secretaria de Audiovisual para continuar fortalecendo o setor e promovendo a cultura cinematográfica brasileira?

Demos um grande passo agora, com a posse do novo conselho superior de cinema, o órgão colegiado responsável por elaborar as metas macro para os próximos 10 anos. A partir desse conselho, teremos um novo plano de metas, o qual é notável por ser o primeiro a contar com paridade de gênero e representantes de todas as regiões do Brasil. Isso representa um avanço significativo para a governança audiovisual do país. O conselho convocará um novo comitê gestor do fundo setorial do audiovisual, refletindo a diversidade presente no conselho.

Qual será a função do comitê?

Esse comitê terá diversos grupos de trabalho, abrangendo temas como internacionalização e planos de diretrizes e metas. Acredito que precisamos consolidar uma política que enfatize a preservação do audiovisual. Sem memória, não há futuro. Embora produzamos muito, é crucial questionar como isso é preservado. Devemos também concentrar nossos esforços na formação audiovisual, preenchendo a lacuna de profissionais no setor. Isso implica em uma colaboração com as universidades, em parceria com o MEC, para aprimorar os cursos existentes. Além disso, é necessário expandir as formações técnicas, uma área que estamos explorando com a ideia de uma política nacional.

Devemos considerar a difusão do nosso audiovisual. Apesar da quantidade de produção, nossos filmes muitas vezes não alcançam a população em larga escala. Isso requer uma expansão do parque exibidor e esforços para formar audiências. Estamos planejando uma série de ações que, gradualmente, serão estruturadas, sempre com foco na sustentabilidade da estrutura.

Secretaria, muito obrigado pela conversa. Há mais alguma observação que gostaria de fazer?

A SAv tem trabalhado intensamente pela internacionalização. Recentemente, lançamos um amplo programa de intercâmbio com duas linhas: uma voltada para a circulação de talentos brasileiros em eventos cinematográficos ao redor do mundo, e a outra para a formação, possibilitando que alunos brasileiros da escola de Cuba acessem bolsas e garantam seus estudos semestralmente. Isso potencializa o nosso audiovisual. O Brasil retornou ao programa CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) com um aporte e está colaborando para um plano de trabalho. Essas produções circularão pelos países de língua portuguesa, mas também estarão abertas ao mundo. O Brasil não participava do programa desde 2018. Recentemente, realizamos a Reunião Especializada de Autoridades Cinematográficas e Audiovisuais do Mercosul (RECAM), onde iniciaremos um conjunto de ações em prol do audiovisual do Mercosul. Fechamos um texto de acordo de coprodução e temos diversas outras iniciativas em andamento.

 

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