Um cinema forjado pela amizade
Longa “A Alegria é a Prova dos Nove”, de Helena Ignez, estreia na Mostra de Tiradentes e trata da cumplicidade e o desejo da liberdade
O primeiro encontro que atriz e cineasta Helena Ignez teve com o cantor Ney Matogrosso foi, no mínimo, inusitado. Na época, Helena desejava trazer Ney para o elenco de seu próximo longa, Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, e queria que o ícone interpretasse o protagonista. Pensava que ele deveria ser um bandido glamouroso e não poderia ser outra pessoa que não fosse Ney. Deu alguns passos calculados: foi a um show do cantor, esperou a apresentação acabar e formalizou o convite. Ney, por sua vez, ficou curioso com a proposta e perguntou: “Tá, mas o que você quer de mim?”, “Tudo”, respondeu Helena. Ele acabou cedendo
Ney sabia bem quem era a cineasta, aquele não se tratava de um convite qualquer. Helena é uma importante figura na construção do cinema brasileiro. Suas primeiras obras foram lançadas ainda nos anos de 1950. Foi casada com Glauber Rocha, mas nunca se deixou ofuscar por esse fato e criou seu próprio legado.
Mais de uma década se passou desde aquele encontro com Ney. Depois dele trabalharam novamente juntos nas obras O Poder dos Afetos (2013), Ralé (2015) e, neste ano, estreiam A Alegria é a Prova dos Nove, na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O interesse e admiração mútua fizeram nascer também uma grande amizade. “Quem diria que Ney Matogrosso se tornaria meu muso”, brinca Helena.
O longa A Alegria é a Prova dos Nove tem início a partir das lembranças de uma viagem feita por Jarda e Lírio (interpretados por Helena e Ney), na década de 1970, para o Marrocos. Nela, os jovens buscam exercer a liberdade que não encontravam no país de origem, que estava sob domínio do regime militar. Mas ali, a diversão dos dois sofre um trágico golpe: Jarda é estuprada por dois militares. A amizade dos dois sobrevive ao tempo, mas o episódio violência é escondido a sete chaves por Jarda. Já aos 80 anos, ela se tornou uma celebrada artista, sexóloga e roqueira, enquanto Lírio se transformou num forte defensor dos direitos humanos.
O filme não se limita a uma discussão ou à lembrança da violência, mas navega por temas como a memória, o desejo pela liberdade, a sexualidades e as relações de amizade, além dos percalços do Brasil contemporâneo. É sobre os desejos e buscas individuais, mas que se mesclam e contrastam em um grupo de amigos.
O vínculo afetivo tem se tornado um dos suportes para o trabalho de Helena Ignez. Além de Ney, grande parte do elenco acompanha Helena há muito tempo, como a atriz Michele Matalon, com quem trabalha junto há mais de 15 anos. Além de colegas, são grandes amigas. “O afeto permeia tudo que faço”, declara Helena. “Se um desses atores não fizesse parte, eu não faria o filme.”
Ney Matogrosso: ator
Assistir Ney na tela é se aproximar um pouco mais do seu verdadeiro estilo, um homem com sorriso doce, um jeito tímido e de poucas palavras. Uma imagem que contrasta com a persona que criou nos palcos desde que estourou com o grupo Secos & Molhados. “Eu construí esse personagem e fui aprimorando ao longo dos anos. Eu estou muito dócil neste filme, um pouco parecido com quem eu sou na vida, eu falo baixo. E a Helena me permitiu isso.”
Quando se apresenta, Ney lembra que é um ator frustrado. O teatro veio antes da música. E foi por causa dele que se descobriu um grande cantor. A vida seguiu outro caminho.
“O destino me levou para outra coisa e eu também não fiz corpo duro. Na hora que a coisa apareceu, eu fui e disse: ‘Bom, não tenho um nome zelar, não tenho nada a perder, vou lá, cantar com esse grupo. Se não der certo, eu toco o meu barco.” O resto é história.
Sobre sua última façanha no cinema, ele conta que recebeu o roteiro de Helena durante a pandemia, mas não havia nada muito fechado ali, e sim mais espaços para criar com o coletivo. A construção da narrativa e da relação das personagens foram sendo feitas de forma orgânica, copiando um pouco da convivência real dos dois, trazendo discussões que faziam parte da relação fora das telas.
“Impressionante como ele está desarmado, aberto para o que vem no momento. Ele se tornou cada vez mais um ator consciente de seu trabalho como ator também, não apenas como cantor, mas também como intérprete dramático”, declarou Helena sobre o amigo e muso.