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O som por trás dos muros

Em nova coluna para Bravo!, Luana reflete sobre "Zona de Interesse", o horror da desigualdade e do preconceito racial no Rio

Por Luana Carvalho
Atualizado em 6 mar 2024, 10h59 - Publicado em 6 mar 2024, 10h02
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O som por trás dos muros  (Bruck Nogueira/Bravo)

Esses dias contei os tiros, 116. Moro num prédio de elite na Gávea de onde escuto os sons da Rocinha. Passei minha infância em São Conrado, muito cedo aprendi a distinguir fogos de tiros. Minha filha de 5 anos também já sabe desde os 4. Em alguns fins de tarde enquanto ela dispara bolinhas de sabão da boca de um peixe, ouvimos os disparos de AR-15. Alguma coisa sempre estourando. O café na mesa, tem panqueca, fruta, mel e iogurte, quem está sendo atingido? Quantos filhos, irmãos, mãe e pai vivos, avós? É confronto ou bala perdida, tem diferença? É mulher grávida, tem neném esperando em casa, é bandido ou polícia, é uma pessoa preta? É criança? É pessoa preta, preta ou preta?

Na resenha sobre o filme Zona de Interesse (de Jonathan Glazer) para a revista Monet, Giovana Abrantes ressalta o trabalho do designer de som, o impressionante Johnnie Burn, como uma espécie de segundo filme. Aquele ambiente familiar harmonioso à revelia do horror que acontece ao fundo – e quando digo ‘ao fundo’ me refiro ao que vemos através daquele muro, mas principalmente ao que se ouvem por detrás daquelas falas – me causou náusea e, assombrosamente, culpa. Culpa, esta, que me faz escrever esse texto e talvez pensar em maneiras de ser mais efetiva contra a violência racial no meu país mas que, na maioria das vezes, não me torna melhor que inamovível ou insuficiente.

Pensei na minha casa.

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Giovana nos lembra que aquelas figuras pulando na piscina e colhendo flores enquanto milhares de judeus, poloneses, eslavos, ciganos, soviéticos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, Maçons, Testemunhas de Jeová e outros povos discriminados – sempre bom lembrar que não foram só Judeus – eram exterminados atrás do muro, não são criaturas asquerosas, tampouco anti-heróis ou vilões como foram retratados em muitos outros filmes do gênero. O ponto cirúrgico da obra do também diretor de Strasbourg 1518 são, como ela mesma descreve, “monstros do pior tipo: parecem-se com qualquer um de nós”.

Sem entrar no mérito comparativo de tragédias, histórico-cultural ou de contexto sociopolítico, até porque nosso presidente já está suficientemente no foco dessa discussão (injustamente) e quem sou eu (que não estou) na fila do pão pra quem as armas são apontadas, não é mesmo? Mas a realidade é que vivemos surdos pra sobreviver. Cegos por opção. Hipócritas, esse sobrenome do meio de todos nós, vilipendiosos. E claro que não estou inaugurando nenhum discurso aqui. O problema é que, apesar de estar num momento de vida voltado pra falar de amor (quem sabe na próxima quarta?), a trilha sonora, o “som ao redor” – e olha que nunca entendi música de fundo (tampouco o Chico Buarque, adorei saber disso) posto que meus ouvidos se voltam pra ela e nada mais importa – anda retumbante até para os surdos sociais das margens do Ipiranga. Adoraria poder discorrer sobre o quanto ando pelas ruas com o sorriso na cara de quem foi dormir embalada por Gal, Marina, Caetano, Sueli, Aragão, Donato, Djavan e Ludmilla, mas o cachorro do vizinho não para de latir.

A criança pedindo uma lata de leite, a criança drogada que não levou o dinheiro da lata de leite e apanhou dos pais também drogados por não terem uma lata de leite pra dar pra criança, o malabarista do sinal de uma mão só, a repulsa por um motorista preto confinado num programa cruel que não abaixa a cabeça para patricinhas brancas, os palestinos assassinados na fila da comida, o rap das armas que permeia a janela da minha casa, nada se ouve no fundo. “Nada se ouve ou se escuta muito menos se sente (…)”, já cantava a bola nosso bom e novo Pequeno Príncipe, único habitante, branco, de seu planetinha sem muros.

Nosso planeta tem 8 bilhões de habitantes. No Brasil são 478 mil homicídios por ano. 78% pessoas pretas. Há muros por todo lado. O amor não é cego. Nem surdo.

 

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