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O cinema como patrimônio nacional

A 18ª edição da CineOP celebra a música preta brasileira nas telas e a reconstrução dos diálogos entre o audiovisual e a educação no âmbito governamental

Por Artur Tavares
Atualizado em 30 jun 2023, 11h22 - Publicado em 30 jun 2023, 10h45

O cinema brasileiro foi protagonista de mais um belíssimo evento na 18ª edição da CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, que aconteceu na cidade histórica mineira entre os dias 21 e 26 de junho.

Evento único no circuito nacional de festivais, com uma programação riquíssima disponível online e com debates dedicados à educação e preservação, a CineOP cativa um tipo diferente de aficionado por cinema. Sem uma competição oficial e exibindo produções além dos lançamentos contemporâneos – embora os haja -, a Mostra prefere fazer recortes específicos e, muitas vezes, históricos. Neste ano, por exemplo, o tema que permeou os filmes exibidos foi a música preta brasileira, suas histórias, seus personagens, suas sonoridades e influências na construção de uma identidade nacional. Edições anteriores já abordaram produções indígenas, o cinema feito por mulheres e a importância da televisão para a formação do audiovisual brasileiro.

20230622 - OURO PRETO - MG - 18ª CINEOP - FILME DE ABERTURA | MOSTRA HISTÓRICA E HOMENAGEM | BAILE SOUL - #CineOP #EncontroNacional #Educação #debates #CulturaNegra #PreservaçãoAudiovisual #ImagensdaMPB #ArteNaPraça #SescCineLoungeShow #CineOP2023 #ouropreto
(Leo Lara/Universo Produção/divulgação)

Cartão-postal de Ouro Preto e lugar importante da história colonial, a Praça Tiradentes torna-se a Cine-Praça durante os dias da CineOP. Sob um frio que não deu trégua, os espectadores e os espíritos da Inconfidência puderam assistir, em sessões sempre cheias, bons filmes que logo entrarão em circuito, entre eles Baile Soul, documentário de Cavi Borges e Marcio Graffiti sobre o surgimento da cena da black music nos bailes cariocas nos anos 1960 e 1970, exibido na abertura do festival, além de Lô Borges: Toda essa água, sobre o lendário músico mineiro, e Diálogos com Ruth de Souza, uma homenagem lindíssima à atriz que morreu aos 98 anos, em 2019.

Por falar em homenagem, nesta edição a CineOP deu seu Troféu Vila Rica à Tony Tornado, ator e músico que, aos 93 anos, é o profissional brasileiro mais velho em atividade nestas duas áreas. Atualmente em cartaz na novela Amor Perfeito, o autor de hinos como “BR-3” e “Podes crer, amizade” foi até Minas Gerais para cantar e também reassistir Quilombo, de Cacá Diegues, lançado em 1984. No filme, Tornado personifica o lendário Ganga Zumba, rei africano escravizado no Brasil, e depois rei de novo no Quilombo dos Palmares.

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(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Ostentando um belíssimo black power e vestido com um moletom estampado com um punho negro em riste acompanhado das palavras power to the people, Tony conversou com os jornalistas em coletiva antes da homenagem e revelou à Bravo, emocionado e com lágrimas nos olhos, o porquê de ter decidido entrar para a televisão: em 1969 assistiu Sérgio Cardoso fazer blackface na novela Cabana do Pai Tomás – que teve Ruth de Souza no elenco como a escrava Cloé. “Eu fiquei tão sentido [chora]! Essas coisas me fizeram entrar nessa luta. Eu lembro que o diretor havia dito que não tinha atores negros para fazer esse papel”. O diretor em questão era Daniel Filho.

Tony Tornado e seu filho cantam. OURO PRETO - MG - 18ª CINEOP - Abertura Oficial - #CineOP #EncontroNacional #Educação #debates #CulturaNegra #PreservaçãoAudiovisual #ImagensdaMPB #ArteNaPraça #SescCineLoungeShow #CineOP2023 #ouropreto
(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Ao lado de seu filho Lincoln Tornado, que o acompanha em suas apresentações musicais, Tony Tornado disse também que nunca havia sido homenageado em todos esses anos de carreira, mas ressaltou que tem havido avanços tanto na preservação da memória das principais figuras negras brasileiras quanto da inclusão de mais pessoas pretas no audiovisual. “Estamos colhendo frutos desse trabalho que é feito há anos. Cheguei na Globo em 1975, e todo esse tempo foi de luta por espaço. Hoje, é gratificante ver uma novela com oito, nove negros no elenco. Quando fiz Roque Santeiro, só tinha eu de preto.”

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(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Tornado ainda prestou seus cumprimentos a outros de seus contemporâneos, como Grande Otelo, Léa Garcia e Milton Gonçalves, lembrando que este foi o primeiro ator contratado na história da emissora carioca. Na CineOP, o diretor Antonio Carlos Fontoura e a preservadora Débora Butruce apresentaram uma cópia digital restaurada de A Rainha Diaba, de 1974, com Milton no elenco.

Um olhar para o cinema

A escolha tão singular da Mostra de Cinema de Ouro Preto de direcionar a programação para filmes além dos lançamentos e focar seus debates em educação e preservação se dá porque sua mesma organização também é responsável por outros dois eventos importantes do circuito, o Festival de Tiradentes, que acontece em janeiro, e CineBH International Film Festival, em setembro.

Enquanto Tiradentes exibe e premia curtas, médias e longas-metragens contemporâneos, Belo Horizonte é um festival que, além de abrir-se para a produção internacional, também debate como levar a produção brasileira para os festivais e salas de cinema no exterior. Nesse contexto, cabe à Ouro Preto promover encontros entre pesquisadores e autoridades oficiais.

Na primeira fila, o homenageado Tony Tornado, seu filho, Lincoln Tornado, e a secretária da do audiovisual no Ministério da Cultura
Na primeira fila, o homenageado Tony Tornado, seu filho, Lincoln Tornado, e a secretária da do audiovisual no Ministério da Cultura (Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

A ministra da Cultura Margareth Menezes cancelou de última hora sua participação na CineOP deste ano, mas foi representada por Joelma Gonzaga, Secretária do Audiovisual na pasta. Além disso, Denise Pires de Carvalho, Secretária de Educação Superior do Ministério da Educação, também marcou presença e participou de debates sobre educação digital.

“A CineOp sai um pouco desse escopo tradicional de festival de cinema e estrutura a programação em três temáticas. É um evento intenso e denso em termos de conteúdo. Ao mesmo tempo, são dois congressos dentro de um festival de cinema, o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais e o Encontro da Educação”, explica Raquel Hallak D’Angelo, coordenadora-geral da Mostra de Cinema de Ouro Preto. “Estamos sempre pensando como podem se dar essas conexões entre cinema e educação, cinema e história, e cinema que olha para o passado com um olhar contemporâneo.”

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(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Durante a CineOP, foram 31 debates e rodas de conversa que mobilizaram 87 profissionais e pesquisadores, além de masterclasses e oficinas. O clima de otimismo pela tão sonhada reconstrução da cultura era óbvio, mas passados os 100 primeiros dias, esse marco tão emblemático de um começo de governo, o sentimento geral era de que os trabalhos precisam de fato começar a acontecer.

Desde 2006, e especialmente entre 2008 e 2015, nós, através dos encontros tanto da educação quanto da preservação, fomos construindo diversos documentos que expressaram as demandas destes setores, as diretrizes, encaminhamentos, e ações emergenciais para ambos, mas especialmente para a preservação, que sempre foi o patinho feio da cadeia do audiovisual”, diz Raquel. “Mostramos a necessidade de se criar um plano, uma política de Estado. O setor veio colaborando, mas quando o plano ficou pronto, em 2016, tivemos o golpe. O impeachment de Dilma Rousseff interrompeu o trabalho, especialmente no Ministério da Cultura.”

Raquel Hallak D'Angelo OURO PRETO - MG - 18ª CINEOP - Abertura Oficial - #CineOP #EncontroNacional #Educação #debates #CulturaNegra #PreservaçãoAudiovisual #ImagensdaMPB #ArteNaPraça #SescCineLoungeShow #CineOP2023 #ouropreto
Raquel Hallak D’Angelo na abertura do 18ª CINEOP (Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Emocionada, ela afirma que “a retomada dessa conversa expressa todo o ensejo, toda a razão de ser dessa CineOP. Para mim, é um momento muito mais do que histórico. É um momento de celebrar, de chorar, de rir, de falar que conseguimos alcançar algo com toda essa luta, principalmente quem milita pela preservação, que estamos vendo essa retomada ecoar dentro do Ministério da Cultura.”

Entre quem entende de preservação, havia um discurso bastante afinado de que os clássicos restaurados e digitalizados possam ser não somente patrimônio, ou material de estudo e pesquisa, como também um ótimo produto de mercado em um momento em que o streaming torna-se cada vez mais a plataforma responsável pela maior parte da produção audiovisual em detrimento, é claro, das salas de cinema.

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(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Com uma trajetória de mais de três décadas junto da Cinemateca Brasileira, a pesquisadora, professora e curadora da temática educação da CineOP Fernanda Coelho explica que hoje “você só pode dar acesso se for de maneira digital, e exibir a película em pequenos circuitos. Quem pode projetar filmes de nitrato, como a Cinemateca Espanhola? Nós não temos um projetor que dê segurança para projetar. Se pegar fogo, acabou. Então, cada vez mais acesso é apenas digital e cada vez menos via tecnologias obsoletas. Precisamos ter condições de digitalização. Porque, se não digitalizar, o nosso cinema histórico, patrimônio, morrerá.”

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Para ela, a armadilha da tecnologia é própria de uma lógica predadora de mercado: “Brinco que saímos do capitalismo selvagem para o capitalismo canalha. Estamos em um momento em que o mercado diz o que a criação deve fazer, e como. Porque eu mantenho essa tecnologia e tornarei a outra obsoleta, você é obrigado a usá-la.”

Ela dá o exemplo de um material que foi muito utilizado como alternativa aos rolos de filme antes do surgimento das câmeras digitais. “Hoje, há um alerta mundial para as fitas magnéticas. Estão dizendo que 2025 é o ano limite para conseguir digitalizá-las. Os leitores vão desaparecer. Claro, é primeiro mundo, onde tudo acontece antes. Talvez tenhamos um respiro de três anos, um pouquinho mais, porque inventamos maneiras de fazer a coisa funcionar?”

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(Leo Fontes/Universo Produção/divulgação)

Raquel faz outro alerta: “Quando você preserva, o acesso já está embutido dentro do conselho de preservação. Mas se não temos uma cota de tela no país, se não temos uma regulamentação do VOD, se não temos uma política de ocupação das salas comerciais, esse cinema não vai chegar.”

E, olhando não apenas para o passado, a coordenadora da CineOP e muitos dos pesquisadores presentes já apontam para um problema que enfrentaremos muito em breve: “Não adianta você ter a lei Paulo Gustavo, que vai fomentar uma produção, se essa produção não tiver para onde ser escoada. Ela não vai chegar em lugar nenhum. É uma discussão que já temos e vamos intensificar, porque também não adianta preservar e ficar escondido numa Cinemateca, nas prateleiras etc.”

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(Jackson Romanelli/Universo Produção/divulgação)

Uma imersão pelo festival

Durante os seis dias de Mostra, Ouro Preto esteve com suas ruas e ladeiras movimentadas. A organização CineOP estima que pelo menos 20 mil pessoas participaram das atividades presenciais, enquanto outras 40 mil assistiram aos filmes de maneira online. Além das sessões de cinema, os bares, restaurantes e pontos turísticos também estavam agitados, e um coreto pelas ruas históricas agitou a cidade no sábado.

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Levar a programação para a internet é uma decisão acertada no contexto de Ouro Preto, cidade cujo único cinema, o Cine Vila Rica, está fechado em reforma há anos, e cuja topografia desfavorece muito qualquer tipo de locomoção, dificultando a montagem de palcos temporários ou a possibilidade de encontrar mais locações além da Praça Tiradentes e do Espaço de Convenções para exibir os filmes. Com isso, pelo menos 60 dos 125 longas, médias e curtas da programação foram mostrados apenas online, entre eles Paulinho da Viola: Meu tempo é hoje, de Izabel Jaguaribe, e Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman.

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(Leo Lara/Universo Produção/divulgação)

Ao mesmo tempo, a CineOP levou até Ouro Preto ótimos shows musicais além de Tony Tornado. Na abertura, a banda Diplomattas convidou Maurício Tizumba para uma viagem pela música preta, e a Mostra ainda contou com apresentações ovacionadas de Rincon Sapiência e a sambista Leci Brandão, além de DJs como Pátrida e Djahi. Aliás, estes, junto com a Festa Junina do domingo, foram os momentos com maior presença de público negro e jovem durante todo o festival.

Com o fim da CineOP, a plataforma digital Itaú Cultural Play exibe até o dia 9 de julho sete filmes da programação da Mostra, são eles: O Lugar Mais Seguro do Mundo, de Aline Lata e Helena Wolfenson; Tim Maia, de Flávio Tambellini; Trem do Soul, de Clementino Jr.; A bata do milho; de Eduardo Liron e Renata Mattar; A jornada de Valente, de Rodrigo de Janeiro; Arruma um pessoal pra gente botar uma macumba num disco, de Chico Serra; e Brasilianas: Cantos de Trabalho – Música Folclórica Brasileira, de Humberto Mauro.

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(Leo Lara/Universo Produção/divulgação)

Nos próximos dias, a cobertura da 18ª edição da CineOP continua com entrevistas com o músico Lô Borges, os cineastas Rodrigo de Oliveira e Cristiano Burlan, uma análise sobre o restauro de A Rainha Diaba e um olhar sobre as principais figuras negras e suas histórias sob a ótica da Mostra. Não perca.

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