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Os filmes que não serão vistos no cinema ou no streaming

O Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte concluiu mais uma edição com foco em obras contemporâneas produzidas na América Latina

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 20 out 2023, 10h04 - Publicado em 18 out 2023, 11h12

Em Belo Horizonte, tudo é “logo ali”. Se você caminhar desavisado de um lugar a outro, corre o risco de andar muitos quilômetros, debaixo de um sol escaldante, subindo e descendo ladeiras e chegar ao compromisso atrasado, suado e ofegante. Mas, sejamos justos, a cidade tem seu encanto e vale a pena se perder um pouquinho por ela. Para isso, não faltam desculpas. Como, por exemplo, em setembro aconteceu a 17ª edição do CineBH International Film Festival, que se estendeu também até os dois primeiros dias de outubro. O evento levou à capital mineira 93 filmes nacionais e internacionais, ocupando oito cinemas e espaços culturais distribuídos pelos arredores do centro da cidade, cercada por montanhas. Não tão “logo ali”, mas próximos.

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(Jackson Romanelli/divulgação)

O CineBH completa a tríade de festivais de cinema de Minas Gerais, que começa com a Mostra de Tiradentes, se prolonga pela CineOP, em Ouro Preto, e encerra a jornada em Belo Horizonte. Os três são produzidos e curados pela Universo Produção. No encontro animado, e às vezes acalorado, entre produtores, cineastas, críticos e pesquisadores, nas salas e espaços de conveniência, há quem diga que o festival em BH é o menos cativante entre os três, pois a possibilidade de circulação e deslocamento entre um local de exibição e outro é reduzida. Sem falar que é também o menos badalado, sem festas ou shows no fim do dia. Embora tenham objetivos e recortes próprios, os três festivais funcionam como uma espécie de circuito paralelo ao mercado de audiovisual e dão maior tempo de vida à carreira dessas obras, que acabam se restringindo a um festival ou outro, ou então a mostras temáticas.

Se há um elemento inegável na dinâmica dos festivais de cinema é que eles tratam das múltiplas maneiras de ocupar a cidade. Não há escapatória, o assunto se estende por discussões como segurança, mobilidade e acessibilidade; esse último tem tido um lugar prioritário nos eventos, com a inclusão de tradutores de libras em apresentações e premiações.

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(Leo Lara/divulgação)

A noite de abertura começou no Cine Theatro Brasil Vallourec, um dos marcos culturais de BH, localizado na Praça Sete de Setembro. Dentro do teatro, uma encenação se inicia com a recitação de poemas sobre Minas Gerais, canções de viola e uma curta apresentação que simula o encontro entre dois artistas: um cineasta apaixonado por teatro e uma atriz dos palcos que tem se aventurado pelo cinema. Essas duas figuras simbolizam pessoas da vida real: os homenageados do festival, o diretor Rafael Conde e a atriz Yara de Novaes. A dupla de artistas, nascidos na capital mineira, forma uma forte parceria profissional. Há anos que Yara se tornou a grande musa dos filmes de Rafael. E se não está atuando, ocupa o lugar de preparadora de elenco.

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(Leo Lara/divulgação)

Em poucos minutos, o festival, que poderia passar como um lugar de celebração e simpatia, é logo tomado pelas primeiras discussões. Às vezes, esquecemos do momento histórico que vivemos. A obra de abertura é o longa , de Conde, inspirada na história real de José Carlos da Mata Machado, um estudante e líder militante que lutou contra a ditadura militar e foi assassinado com apenas 27 anos por agentes do Estado. O ator Caio Horowicz, que interpreta Zé, toma a palavra, resume a sinopse e diz que a obra foi filmada durante a pandemia “sob um governo autoritário e negacionista”. A reação é imediata. Da última fileira do teatro, escuta-se um senhor berrar: “É mentira”. E então as discussões começam e se estendem por alguns minutos, com palavras contra Bolsonaro e outras favoráveis a Lula. Mais pessoas se juntam aos gritos. “Não à anistia”, diziam muitos em referência ao passado e ao presente. No meio da fogueira, Caio tenta seguir o protocolo com seu discurso, enquanto ao fundo, o debate continua. O trecho, entretanto, não está no vídeo de abertura compartilhado no YouTube. O que é uma pena! Afinal, foi um início político que se prolongou até a abertura do filme, com manifestações contrárias aos apoiadores do evento, sendo um deles o governo do Estado de Minas Gerais. “Fora Zema”, gritavam pessoas na plateia, em menção ao atual governador.

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(Rafael Conde/reprodução)

Situação acalmada, começa a exibição. Ao fim, a obra não entusiasma tanto. Talvez por partir de uma fórmula desgastada sobre histórias da ditadura, que beira o melodramático, ou talvez por um elenco predominantemente branco, com exceção da babá ou dos camponeses analfabetos que passam por um processo de educação pelos militantes. Ao voltar os olhos pela sala, um reflexo do filme, quase nenhum negro. Embora seja um importante registro de memória dos tempos da ditadura, o longa está longe – muito longe – de ser um dos melhores do diretor, que já criou o genial Samba-canção (2002), que conta a história de uma dupla de cineastas que, diante da falta de investimentos para fazer um filme na retomada pós-ditadura, recorrem à criminalidade.

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(Rafael Conde/divulgação)

Histórias além das nossas

Para sorte do evento, os próximos dias são menos marcados por divergências e trazem mais diversidade, não apenas de corpos e cores, mas também de nacionalidades. Afinal, trata-se de uma mostra internacional. Desta vez, ela se dedica a dar visibilidade a obras produzidas na América Latina, com o tema Territórios da Latinidade. “A proposta foi fazer uma reflexão sobre o que nos aproxima em termos sociais, geográficos e históricos, e o que as imagens estão nos dizendo diante da diversidade que nós somos e do que nos une em pontos comuns”, destaca Raquel Hallak d’Angelo, sócia-fundadora da Universo Produção e Coordenadora Geral do CineBH.

Ainda são raras as ocasiões públicas que exibem filmes latinos. E o festival de BH, por tradição, prioriza dar espaço a produções com menor facilidade de atingir um circuito comercial, não pela qualidade, mas pelo estilo mais experimental. O que é um acerto. Em um dos debates da semana, que trata dos desafios e oportunidades de obras audiovisuais no mercado internacional, o crítico de cinema Pedro Butcher, e mediador da conversa, fez um apontamento generoso ao destacar a necessidade de criar oportunidades para que os filmes encontrem seus públicos e vice-versa. Em outras palavras, o óbvio: o interesse pelo cinema vai muito além de filmes comerciais.

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(Leo Lara/divulgação)

“Optamos por apostar em uma vertente de filmes que foge um pouco do padrão adotado, inclusive nos festivais europeus, de mostrar uma América Latina padronizada. Fizemos esse recorte apostando em quem está no início de carreira no longa-metragem, e também em uma cinematografia que muitas vezes não encontra espaço nos festivais e não chega ao circuito comercial de seus países, rompendo essa barreira invisível”, conclui Raquel.

Fundado em 2007, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, o CineBH acompanhou profundas transformações no audiovisual, especialmente com o advento do streaming, e o fechamento dos cinemas de rua. “O grande diferencial do festival é ser um evento internacional de cinema de uma capital, mas que leva produções aos poucos cinemas de bairro que restam. Belo Horizonte já teve 120 salas de cinema de bairro, hoje só restam quatro.”

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(Suellen Vasconcelos | Tati Franklin/divulgação)

Concomitante ao festival, ocorreu a 14ª edição do Brasil CineMundi – International Coprodution Meeting, um encontro de mercado que une produtores e artistas buscando fortalecer novas parcerias e articular projetos de audiovisual. Muitas produções nascem ali, inclusive aquelas que anos depois podem concorrer no festival, como foi o caso de Toda Noite Estarei Lá, de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin. “Essa foi a nossa terceira exibição. Estar em uma mostra de BH, para um público especializado, é importante. Foi extremamente significativo para nós estarmos nesse lugar de destaque, representando o cinema brasileiro. Isso confere um respaldo para o filme neste momento de nossa carreira. Já passamos pelo Brasil CineMundi em 2018. O coração do filme realmente nasceu ali, nas conexões que fizemos, nas mentorias que recebemos e nos caminhos que trilhamos após essa experiência. Esse festival tem acompanhado nosso filme desde o início, desde quando era apenas um projeto”, conta Tati, sobre o primeiro longa da dupla.

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(Suellen Vasconcelos | Tati Franklin/reprodução)

Um dos legados da mostra, conta Raquel, foi a recuperação do Cine Santa Tereza, que passou a abrigar as edições anuais do festival. “O CineBH nasceu para chamar a atenção da necessidade de olhar para esse mercado, para esse circuito que já existiu em Minas Gerais, com 853 salas de cinema. Paralelamente, fazendo esse trabalho de tentar recuperar as salas e mostrar que o cinema é possível em outros lugares.”

Rafael Conde fala com nostalgia das primeiras edições. Sua história com o festival já é antiga. Para ele, um dos maiores atrativos do CineBH, como qualquer outra mostra, é a possibilidade do encontro, que ganhou um novo significado nos últimos tempos. “Lembro quando apresentei meu primeiro curta em Gramado, aos 23 anos. Ele acabou vencendo. Éramos um bando de jovens. Não havia internet, nem celular. Foi muito especial para descobrirmos que não estávamos sozinhos no mundo, com esse desejo de fazer cinema. O mais importante nos festivais é a possibilidade do encontro”, declara o cineasta.

Foi do encontro com Rafael que a atriz Yara de Novaes começou a fazer cinema. “Essa é uma parceria de muitos anos. Ele me chamou e me tornou uma pessoa importante em seus filmes. Estar sendo homenageada ao lado dele é incrível. Me sinto muito honrada”, afirma Yara.

Outro homenageado do evento foi o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, que faleceu em julho em um trágico acidente doméstico. Na programação, foram apresentados os filmes O Rei da Vela (1982), dirigido por Zé e Noilton Nunes, e Fédro (2020), de Marcelo Sebá, que mostra o reencontro, após duas décadas, entre o dramaturgo e o ator Reynaldo Gianecchini.

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(Marcelo Sebá/reprodução)

Mostra competitiva

Neste ano, o festival inaugurou a mostra competitiva Território, na qual 8 longas, de 7 países latinos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Paraguai e Peru), concorreram aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Atuação (que pode ser entendida como melhor atuação ou participação, no caso de documentários) e Destaque do Júri. Entre os longas, o paraguaio Guapo’y, de Sofía Paoli Thorne, foi duplamente coroado: com o prêmio de Melhor Filme pelo júri oficial e júri da crítica. O filme é o primeiro longa de Sofía, que apresenta Celsa, uma artista e militante que, há 45 anos, foi presa e torturada em um campo de concentração durante a ditadura paraguaia – a mais longa da América do Sul, que durou 35 anos. Para lidar com as dores em seu corpo – que ainda existem –, ela cobre a pele com raízes e folhas retiradas de seu jardim. Sofía, que é peruana, também tem suas próprias memórias de uma ditadura. Ela precisou fugir com seus pais dos conflitos armados de seu país quando ainda era criança. Adulta, soube da história de Celsa a partir de uma notícia de jornal. Desse encontro, além do filme, nasceu também uma amizade entre as duas.

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(Sofía Paoli Thorne/reprodução)

A escolha de Guapo’y como vencedor da noite estava longe de ser uma escolha previsível nessa competição. Outras obras, facilmente, poderiam ser laureadas. É o caso de Toda Noite Estarei Lá, o único brasileiro na competição. O documentário narra a saga de Mel Rosário, uma mulher trans, profundamente religiosa, que foi expulsa da igreja que frequentava, em Vitória, e passa a lutar na Justiça pelo direito de voltar a participar dos cultos. Enquanto espera por uma resolução, ela protesta todas as noites em frente ao estabelecimento. O filme foi eleito o Melhor Filme pelo júri popular no Festival de Cinema de Vitória. Uma das grandes forças do filme está em sua protagonista, Mel, que, devido ao seu carisma e autenticidade, recebeu o prêmio de melhor interpretação, embora a obra seja um documentário. Não há dúvidas, entretanto, de que o filme continuará a percorrer grandes festivais e que Mel se tornará uma estrela da representatividade.

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(Leonardo Barbuy/reprodução)

Outra obra-prima é o filme peruano Diógenes, de Leonardo Barbuy, que conta a história de uma família que vive isolada nas montanhas de Ayacucho, nos Andes. O pai é um pintor de Tablas de Sarhua, um tipo de adorno presente em todas as casas da região que registra a história das famílias. Em troca de seu trabalho, ele recebe provisões para alimentar a família. O filme tem uma história comovente de bastidor: aos 14 anos, Leonardo perdeu seu irmão mais velho, um entusiasta do cinema, que possuía uma vasta biblioteca de filmes. Leonardo herdou os documentos e a paixão pelo cinema. No entanto, aos 16 anos, perdeu um curta-metragem quando o computador do editor foi roubado. Ele decidiu não fazer mais filmes. No entanto, aos 30 anos, teve um sonho que o inspirou a retomar a carreira. Para realizá-lo, o diretor conviveu com a comunidade retratada no filme por cinco anos e convidou membros da sociedade local para atuar na produção. Entre todos os longas na competição, “Diógenes” se destaca pela impressionante direção de arte e fotografia. A melhor entre os filmes da competição. “Quando contei a uma liderança da comunidade sobre o que eu tinha sonhado e as ideias que estava tendo, ela me disse que era o meu destino fazer o filme com eles. Nesse sentido, muitas pessoas da comunidade entenderam muito claramente que o filme deveria ser feito, e a participação deles foi ampla. Eles estavam felizes, encantados e orgulhosos de fazer o filme”, declara Leonardo.

Olhando para o Futuro

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Joelma Gonzaga e Raquel Hallak d’Angelo em audiência no Ministério da Cultura em março de 2023. (Paulo Cavera | Universo Produção/divulgação)

Nem tudo foi festa. Durante a semana, o festival revisitou algumas preocupações e necessidades urgentes que precisam ser resolvidas no cenário do audiovisual brasileiro. A prioridade no momento é debater a regulamentação do VoD (Video on Demand ou streaming) no Brasil, uma questão em que o país está significativamente atrasado. A Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura, representada por Joelma Gonzaga, que antes de ingressar no órgão trabalhou por muito tempo como produtora de cinema, é uma das lideranças nessa discussão. Ela enfatiza que, enquanto não houver regras claras, a negociação entre plataformas e produtores será desigual. “Os produtores estão dando a alma para os serviços de streaming”, desabafou durante um debate sobre o tema.

Atualmente, o projeto de lei 2.331/2022, que trata do assunto, tramita com urgência no Congresso Federal. “Nós vamos regular, é fato. Isso já acontece no mundo todo”, afirmou a secretaria.

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