Na coluna Poelatria, Carlos Castelo entrevista o poeta Leonardo Gandolfi sobre a sua grande ciranda
POELATRIA/COLUNA
Por Carlos Castelo
Em Robinson Crusoé e seus amigos, o poeta Leonardo Gandolfi, mescla gênios em garrafas pet, Clarice Lispector, Kaváfis e Julio Iglesias. Também não falta a presença de uma mosca chamada Albertina, às voltas com a Teoria da Relatividade. Como o próprio Gandolfi diz, são muitas vozes, “vindas de muitos tempos e lugares”, que nos assaltam num livro de difícil classificação. Mais do que poesia, Robinson Crusoé e seus amigos, como numa grande ciranda, propõe novas formas de brincar.
Poelatria conversou com poeta sobre sua nova obra.
Se o mundo das artes literárias fosse um oceano, que em suas águas juntasse passado e presente, e cada autor novo uma nova onda, como você gostaria de quebrar na praia?
Não tem muito espaço para eu pensar nisso, porque só me vejo nesta praia como leitor, adoro esse oceano, porque ler literatura é que é a minha praia, e muitas ondas quebraram e quebram nela.
Nietzsche afirmou que, por não se adequar perfeitamente a seu tempo, o filósofo poderia melhor compreendê-lo. A afirmativa poderia também se aplicar à poesia contemporânea?
Acho que sim. Mas não como forma de inadaptação. A história não é um acúmulo de fatos e eventos, mas sim um objeto de construção do presente. Com isso, a necessidade de uma contínua elaboração do passado, diante de representações hegemônicas dele, passa a ser uma forma de resistência, mas não a resistência de quem deseja retornar a antigos valores, e sim a resistência de quem consegue, como diz Walter Benjamin, “explodir uma época determinada para fora do curso homogêneo da história”. Um processo a um só tempo afetivo e político. Gosto de quando o poema encara as diversas formas de temporalidade não como fardo a ser suportado ou enfrentado, mas como ferramenta para ler e dizer o presente. É isso que busco como leitor. Nesse sentido, o passado não tem lição alguma a dar ao presente. Mais do que isso, como diria Benjamin, o passado pode ser, para o presente, um “tempo de agora”.
Até onde humor e nonsense são importantes em Robinson Crusoé e seus amigos?
Acho que uma visão bem-humorada está bem presente. Pelo menos foi o que percebi enquanto eu escrevia os poemas e montava o livro. Mas acho que o humor nele está bem misturado com outras formas de encarar as coisas. Não perdi de vista, enquanto fazia o livro, que há muitas formas de luto em jogo ali.
Como estudioso da literatura portuguesa, você fez trabalhos acadêmicos sobre o poeta, pouco conhecido no Brasil, Carlos de Oliveira. Quais as principais contribuições de Oliveira à literatura de Portugal e quais as semelhanças com a poesia de João Cabral?
Carlos de Oliveira é um autor central para mim. Ele está presente em diversos momentos da minha vida de leitor. Há nele um senso de lealdade à palavra no poema que sempre me instiga e me comove. Sobre as possíveis relações com Cabral, estudei no doutorado as relações entre construtivismo e extravio do construtivismo nas obras de ambos, me perguntei como esse extravio — que pode ser estimulante — se dá no processo de formação da paisagem na obra dos dois autores.
“Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos”. São palavras de T.S.Elliot em seu ensaio “Tradição e talento individual”. O legado artístico, na contemporaneidade, não convive mais com a influência das musas?
No meu livro há literalmente muitas vozes, vindas de muitos tempos e lugares. Acho que elas participam de algo em comum nas páginas. Vou deixar com você um poema da Adília Lopes sobre a musa:
“A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra”
No poema, A Caixa, você fez uma menção onde lê-se: “com Lydia Davis”. Os textos lembram, em especial, as mininarrativas da autora. Foi uma homenagem, uma releitura, uma paródia ou nenhuma/todas as anteriores? A propósito, como analisa o trabalho de Lydia Davis?
No livro há várias indicações de “coautorias”. Porque leitura e escrita geralmente funcionam como uma coisa só para mim. Na verdade, acho, escrever poemas me ajuda muito a ler outros textos. Quando estou escrevendo, me sinto melhor leitor do que quando não estou escrevendo. Ler é prazeroso, mas ler — enquanto estou escrevendo — é mais prazeroso ainda. E gosto muito do espírito dos textos da Lydia Davis, gosto de como suas micronarrativas experimentam formas e gosto também de como elas lidam com o humor e com as emoções.