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Da galhofa ao centenário

Dirigido ao grande público, o livro “Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim” se vale do rigor e das várias histórias deliciosas em torno movimento Com Oswald de Andrade à frente, alguns dos “futuristas” de 1922 Em 1952, Manuel Bandeira foi questionado por um repórter do Diário Carioca se era o caso de celebrar […]

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h11 - Publicado em 2 dez 2021, 13h05

Dirigido ao grande público, o livro “Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim” se vale do rigor e das várias histórias deliciosas em torno movimento

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Com Oswald de Andrade à frente, alguns dos “futuristas” de 1922

Em 1952, Manuel Bandeira foi questionado por um repórter do Diário Carioca se era o caso de celebrar os, então, 30 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. De mau humor, o poeta disse que o ato seria “perfeitamente dispensável”, emendando: “Que esperem o centenário. Se no ano de 2022 ainda de lembrarem disso, então sim.”

Essa é uma das muitas histórias presentes no livro Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim, de José de Nicola e Lucas de Nicola, que será lançando nesta sexta-feira durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Com quase 650 páginas, recheado de documentos e iconografia da época, a edição chega para fazer parte das comemorações daquilo que outro modernista mais entusiasmado, Mário de Andrade, projetou como o “1º Centenário de nossa independência literária”.

Com jeitão de almanaque, Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim analisa os desdobramentos do movimento na cultura brasileira, mas com a bossa de um texto feito para o grande público: rigoroso, mas valendo-se das muitas histórias deliciosas que gravitam em torno do movimento.

Abaixo, um trecho do Prefácio da edição, que resgata uma crônica publicada no dia 23 de fevereiro de 1922 na revista quinzenal A Vida Moderna, assinada por Julio Freire. Nela, fica bem evidente que, na época, boa parte da elite intelectual tomou como galhofa o movimento, que, sim, transformaria a produção artística brasileiro nos cem anos seguintes.

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“Em sua edição de 23 de fevereiro de 1922, a revista quinzenal A Vida Moderna trazia na capa uma foto colorida de Carmel Myers na qual a atriz de cinema estadunidense aparece trajando um vestido branco e um curioso chapéu vermelho de três pontas, de cujas extremidades caem véus que envolvem o seu corpo. Em um movimento de graça e leveza, como em um passo de dança, seus braços estão abertos e arqueados, a perna direita dobrada em ângulo reto. A foto da capa vinha bem a calhar; afinal, a revista ilustrada — que se dedicava a literatura, atualidades e artes — tinha no cinema um de seus principais assuntos; além disso, era época de carnaval, um tempo de festa e alegria. A revista parecia querer lançar tendências para os bailes e corsos.

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“Nas primeiras páginas, como era tradicional nas publicações do gênero, apareciam diversas publicidades. As dos cremes Ludovig e Simon, assim como do Elixir de Nogueira, produtos excelentes no combate a cravos, espinhas, rugas e outras moléstias da cútis. Para a pele, também era recomendada a pomada Lugolina; a propaganda desta última é das mais interessantes: sob o imperativo ‘Diga conosco’, o desenho do rosto de uma mulher se repete quatro vezes, lado a lado, sendo que em cada um deles, como se percebe pelo formato da boca, a personagem pronuncia uma das sílabas do nome do unguento. Para combater a calvície e assegurar um cabelo novo e abundante, com ar rejuvenescido, a loção Pilogenio prometia uma solução rápida e eficiente. Todos esses produtos podiam ser comprados na farmácia Giffoni, assim como os diversos tonificantes exclusivos do estabelecimento, que auxiliavam na formação de dentes e ossos, reparavam as perdas nervosas e estimulavam o cérebro e os pulmões.

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“Na sequência, deixando o domínio da saúde e dos cosméticos, vinha a propaganda dos cigarros Goal, em cujas carteiras podiam ser encontradas fotos artisticamente trabalhadas dos principais ‘players’ do campeonato paulista de ‘football’. Era uma ‘bela lembrança’. Logo abaixo, um chamativo anúncio conjunto do Guaraná Espumante e do chocolate Lacta, ‘dois excelentes produtos que honram a indústria paulista’ — dois produtos que, dali a alguns meses, seriam muito comentados nas páginas de Klaxon: Mensário de arte moderna. Ainda havia espaço para as publicidades da água Caxambu, ‘a soberana das águas de mesa’; das empresas de decoração Hortulania Paulista e João Pekny, onde se encontrava de tudo para os ambientes de festas; do lança-perfume Pierrot, que, ‘segundo a opinião dos entendidos, já não fica a dever nada ao melhor até hoje aparecido’; e da ‘feliz e popular’ Casa Lotérica da praça Antônio Prado.

“Passada a seção publicitária, vinha estampada a ‘Crônica’, o texto que abria todas as edições da revista, como que cumprindo as funções de um editorial. Naquele 23 de fevereiro, a crônica, assinada por Julio Freire, ocupava duas páginas. Apresentando-se como “futurista”, o texto trazia ‘impressões’ dos eventos ocorridos na noite do último dia 15 no Theatro Municipal. Era um ‘relato’ do que se passara no segundo festival da Semana de Arte Moderna, que fora dedicado à literatura e à poesia.

Mário de Andrade se levantou e disse dois poemas. A sensação foi tamanha, ‘foram tantos os aplausos e os bises e os coricócós que o incomensurável poeta não quis dizer mais… Estava satisfeito… Para sua Glória bastava! E embatucou’

“De acordo com o cronista, o glorioso Theatro estivera ‘semirrepleto’. No palco, ao abrirem-se as cortinas, entre outros, estavam os ‘Andrades do futurismo, bandeirantemente!’. Sem demora, um jazz-band começou a tocar; Menotti del Picchia, fazendo as vezes de mestre de cerimônias, iniciou sua fala causando sensação: ‘Atiraram-nos o epíteto de futuristas que nós não somos, mas aceitamos.’ Os indivíduos postados no palco se animaram ao ouvir essas palavras e, em suas faces, surgiram os primeiros risos. ‘Risos escarlates!’

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“Menotti continuou: ‘Nós apenas queremos acabar com os deuses da Grécia e as imagens gregas… Queremos cantar o automóvel e o aeroplano… Edu é o novo Ícaro!…’ A referência ao personagem mitológico e ao aviador paulista Edu Chaves, pioneiro dos raids entre Rio e São Paulo, o mesmo que, em dezembro de 1920, completara a travessia aérea entre Rio e Buenos Aires, abriu margem para o início da presepada. Um dos espectadores presentes nos balcões superiores, espaço conhecido como galinheiro, gritou: ‘Mas Ícaro é grego… Quá, quá, quá, quá. Bravo… Aí Menotti!’ Os risos da grei futurista, de escarlates, foram se tornando amarelados. Um dos presentes na plateia, espaço mais seletivo, aproveitou a interrupção abrupta para se dizer admirado com a presença de Graça Aranha em meio ao grupo que se apresentava, por se tratar de ‘um mestre que nós… admirávamos’. Não entendia por que o célebre escritor emprestava o seu nome a essa ‘bambochata! Tem graça…’.

“Após as intervenções do público, Menotti retomou a fala: ‘A mulher, apeada do seu pedestal, deixa de ser a única musa… Fora a mulher!…’. A essas palavras, quem reagiu foi Guilherme de Almeida, que estava no palco: ‘Protesto! Eu só sei cantar a mulher! E sou do grupo!’ O galinheiro do Municipal novamente foi às gargalhadas, e os sorrisos da grei eram já de chumbo. Menotti prosseguiu sem se abalar: ‘Queremos sepultar a velharia da Grécia e seus deuses; deitar por terra todo o passado!…’ Dessa vez, foi Graça Aranha, o ‘novo papa futurista’, quem fez um aparte: ‘Perdão, mas não faz muito que eu disse isto: Façamos a nossa cura de Rousseau, VOLTANDO À GRÉCIA, COMPREENDENDO O TRANQUILO SEGREDO DO PARTENON, disciplinando o nosso espírito pela geometria eterna, raciocinando com Descartes, investigando com Espinoza…’ Do fundo da plateia, uma voz se levantou: ‘Bravo! Mestre! Pág. 196 da Estética da vida!…’

“Após as colocações de cunho teórico e geral, era chegado o momento de exemplificar a arte nova. Menotti emendou: ‘Ides ouvir o maior poeta de S.Paulo, o que equivale a dizer, do MUNDO!…’ Com essas palavras, Mário de Andrade se levantou e disse dois poemas. A sensação foi tamanha, ‘foram tantos os aplausos e os bises e os coricócós que o incomensurável poeta não quis dizer mais… Estava satisfeito… Para sua Glória bastava! E embatucou’. Em meio às ferrenhas manifestações vindas do galinheiro, ‘uma bexiguinha de carnaval desce assobiando: Fuiiiin!… Fueeeen!’.

“Na sequência, Menotti anunciou que chegara a vez de Sérgio Milliet falar. O moço se levantou e só se ouviram palavras desconexas; em francês, ainda por cima. Como reação, o galinheiro respondeu: ‘Hen, huan, honhon!… Miau! Mais non. Mais non! Mé notti…’ Aproveitando a deixa, alguém exclamou, na plateia, que Menotti não era nem passadista, era mais que velhista, era arcaísta, ‘isto é, do tempo em que se atava cachorro com a dita’, só se cantava ‘o que os outros já estafaram’. O cúmulo era agora se dizer modernista. Na sequência, declamou o poeta Agenor Barbosa, a quem todos ouviram e aplaudiram. ‘É que ele não é futurista e os seus versos eram poesia!’

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Menotti retomou a fala: ‘A mulher, apeada do seu pedestal, deixa de ser a única musa… Fora a mulher!…’. A essas palavras, quem reagiu foi Guilherme de Almeida, que estava no palco: ‘Protesto! Eu só sei cantar a mulher! E sou do grupo!’ O galinheiro do Municipal novamente foi às gargalhadas, e os sorrisos da grei eram já de chumbo.

“A certa altura da noitada, de uma das frisas, alguém irrompeu, com ares de teórico das artes: ‘Quem está plenamente satisfeito da sua produção artística, achando que não podia fazer melhor… é cretino. Os futuristas, achando que o que fazem é a obra mais perfeita possível, que serão?…’ Quando Menotti tentou recomeçar as apresentações, alguém pediu das galerias: ‘Ora, acaba com isso! O que nós queremos é ouvir Guiomar Novaes!’ Mas o mestre de cerimônias se manteve firme e rebateu: agora iriam ouvir versos de Ronald de Carvalho. O jovem e já famoso poeta, que tinha vindo do Rio de Janeiro, sorrindo um tanto constrangido, disse ter ouvido um cachorro latindo na parte superior do teatro. E alguém gritou: ‘Perdão! Não é cachorro: é o eco da voz do orador que o precedeu!…’ Começou então um ‘diálogo atrevido’, um bate-boca ‘moderno, futurista…’ que ao fim se transformou em uma troca de ameaças: ‘Desce pra cá… Eu sou homem!…’

“Em meio à confusão, de repente vibraram ‘palmas incontestáveis’, ‘aplausos de entusiasmo inconfundível’. A razão: ‘Ao palco assomou a figura da grande sacerdotisa da arte verdadeira.’ Era a pianista Guiomar Novaes, ‘bizarra intérprete dos gênios de ontem e de hoje’, ‘senhora dos ritmos’, ‘honra e glória da terra paulista’. Era artista das grandes, não se deixava levar por ‘cabotinismos’. O contraste foi evidente, a atitude da audiência mudou de maneira radical: ‘Galeria, camarotes, frisas e plateia em delírio, cobriram de palmas e de bênçãos Aquela que nos dava a arte verdadeira!’ Mas isso não passava de simples ‘parênteses eloquentes na vaia aos futuristas’, esses artistas ‘bem pouco futurosos!…’. Julio Freire, sem querer se estender mais, aproveitava os parênteses para concluir o relato de suas impressões: ‘Depois… as estrelas continuaram menotticamente a tocar os jazz-band de luz, ritmando a graça das aranhas na harmonia das esferas…’ E ‘era uma vez…’ o futurismo!…”

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Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim, José de Nicola e Lucas de Nicola. Sextante, 648 págs., R$ 79,90.

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