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Cultura e política em 6 canções de Caetano Veloso

De “Samba em Paz” a “Manhatã”, a música de Caetano Veloso permite ouvir a passagem de uma cultura política nacional à consolidação do capitalismo tardio

Por Daniela Vieira*
Atualizado em 7 dez 2023, 15h20 - Publicado em 7 ago 2020, 01h32

Caetano Emanuel Viana Teles (1942), que hoje aniversaria, ainda figura dentre os artistas com grande popularidade no país, seja pela memória do legado da sua produção, que transformou o modo de trabalhar com a canção no país, seja pela tentativa de sempre buscar se atualizar no compasso das cenas musicais contemporâneas. Ao longo desses cinco meses infernais de quarentena, o artista fora criando expectativas nos seus seguidores quanto a possibilidade da realização de uma live que, finalmente, ocorrerá. Intitulada #livealenda, a escolha para a tão esperada apresentação não poderia ter sido mais estratégica, justamente no dia em que completa 78 anos.

Dentre as diversas leituras possíveis da sua vasta obra, tecerei neste ensaio algumas notas sobre a sua produção ao longo de 30 anos, entre as décadas de 1960 e 1990. Trata-se de canções balizadas historicamente entre a ditadura civil-militar (1964–1985) e o advento do neoliberalismo no Brasil, as quais flagram de variados modos o processo de modernização à brasileira e, junto disso, as mudanças de orientação estético-ideológicas da chamada MPB.

Como muitos artistas da sua geração, Caetano é fruto da promessa modernista dos anos 1930 e do ideal de formação desenvolvimentista do Brasil. Herdeiro da cultura política dos anos 1950, inspirado pela bossa nova, ainda que não apenas, ele ajudou a construir e, igualmente, incorporou em suas produções aspectos das manifestações artísticas do pós-1964, seja em âmbito nacional ou internacional. Com isso, conjugou em suas canções os diversos problemas e também as possibilidades de um país periférico sob as intempéries de um governo autoritário, revelando as incertezas, as possibilidades e as frustrações de uma derrota política à esquerda.

Nos anos 1960, não é novidade, questões presentes em alguns setores da esquerda vinculavam-se à problemática do povo, do lugar e da função social do artista. Samba em Paz (1965), lançada no primeiro compacto simples de Caetano, aponta para perspectivas de mudanças futuras, e orienta-se pelos pressupostos da esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro e aos Centros Populares de Cultura. O argumento descrito acima revelam-se nos versos:

O samba vai crescer
Quando o povo perceber
Que é o dono da jogada

O samba vai vencer
Pelas ruas vai correr
Uma grande batucada

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Samba não vai chorar mais
Toda gente vai cantar

O mundo vai mudar
E o povo vai cantar
Um grande samba em paz

Colocar em relevo o sentido social de Samba em Paz desnaturaliza a ideia de que Caetano sempre esteve alheio ou foi crítico da esquerda brasileira e das manifestações culturais à esquerda. É necessário compreender como o seu projeto estético-político para a música popular brasileira não se desenvolveria sem um primeiro contato e/ou incorporação de aspectos ligados às políticas culturais nacionais-populares que informaram a produção artística nacional nos anos 1960. Se, por um lado, essa incorporação de aspectos do nacional-popular em sua obra não é decisiva, por outro lado, sem a adição dessas referências a síntese expressa no tropicalismo, salvo engano, não se estruturaria.

Essa relação contraditória e muitas vezes de negação com os vários pressupostos da esquerda brasileira à época, como a de conscientização popular e busca do povo e, na mesma linha, a crença em um futuro melhor para o Brasil é colocada em tensão em seu primeiro álbum em parceria com Gal Costa. Trata-se do disco Domingo (1967), produzido por Dori Caymmi (que também assinou alguns arranjos), Roberto Menescal e Francis Hime.

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O intimismo, a leveza e a contenção vocal típicos da bossa nova dão o tom ao LP. Um Dia sintetiza diversos aspectos relevantes desse álbum, o qual condensa o que chamo de estreia de despedida, ou o começar já deixando da produção musical de Caetano Veloso em direção à estética tropicalista. Em especial, representa a despedida de um aspecto do processo histórico brasileiro, corporificado nas produções artísticas daquele tempo, de crença nas possibilidades de transformação coletiva da sociedade. Um Dia informa essa impossibilidade, apontando para um contexto no qual a sociedade civil e política, aos poucos, colocava em segundo plano os ideais revolucionários baseados, sobretudo, na luta política organizada.

As canções desse LP figuraram no desconforto com a realidade e certa indefinição sobre como e para onde caminhar. Esse disco revela como Caetano Veloso incorporou o projeto modernizante da bossa nova para superá-lo através das diversas referências do chamado “som universal”. Tais referências e, especialmente, a crítica aos pressupostos da esquerda se revelam com força na canção Eles.

Essa canção data de 1968 e integra o primeiro disco solo do artista. Do ponto de vista do tema, Eles realiza algumas combinações nonsense, contribuindo para o tom satírico e irônico que costuram a música. Além de se estruturar na crítica à burguesia, tema igualmente presente em Panis et Circenses, a canção vincula setores da esquerda à burguesia. Nos últimos versos (“Está sempre à esquerda a porta do banheiro/ E certa gente se conhece no cheiro”), a matéria histórica cantada indica quem são “Eles”. Do ponto de vista musical, incorpora as variadas referências estéticas singulares do tropicalismo, misturando o ritmo do coco aos acordes da guitarra.

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No que se refere à instrumentação, é notável a escuta de uma sonoridade que remete à citara e à tabla, dois instrumentos indianos, cujo sentido aponta para a possível alusão aos Beatles, pois, como se sabe, a introdução de instrumentos indianos na música pop ocidental foi implementada por George Harrison. Além dessa referência, há na combinação das sonoridades ocidental e oriental a incorporação de procedimentos da contracultura e da cultura internacional-popular. Todavia, a filiação ao internacional-popular não exclui os elementos da cultura nacional.

Já nos anos 1970, muitas das canções de Caetano expressam a libertação do corpo, a “erotização do ser”, o “desbundado”, bem como temas ligados à homossexualidade. Todavia, sem a radicalidade e as contradições que davam força às canções tropicalistas. Este é o caso da canção Muito Romântico, que integra o disco Muito (Dentro da Estrela Azulada) de 1978. Diferente da versão de Roberto Carlos, na qual há intervenções de instrumentos como guitarra, contrabaixo, bateria, teclado e naipes de sopro, Caetano a entoa à capela e com a ajuda de um coro, que realiza as harmonizações ao longo da música.

Do ponto de vista da letra, o sentido da canção consiste no lamento pelo término de uma relação incompatível. Se contextualizada, vemos que ela revela algo além do término de um relacionamento amoroso. Muito Romântico estrutura o rompimento com a política cultural nacional-popular que, parafraseando um verso da canção, apresenta “um papo que já não deu”. Mas é fundamental perceber como esse término é entoado com lamento em várias partes da música.

Nessa mesma linha, algumas canções de início da década de 1980 continuam a problematizar o lugar social do artista e o novo status da canção MPB, já distante das manifestações culturais nacionais-populares. É o que ocorre na canção Jeito de Corpo que compõe o disco Outras Palavras (1981).

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A canção é introduzida no ritmo do samba rock, e os primeiros versos já revelam o hedonismo do eu lírico. Num jogo de palavras, ele demonstra que a falta de crenças se coloca como a verdadeira crença; é a falta de convicção e a distopia que estruturam as suas vontades. As certezas estão em movimento e, talvez, periguem cair. Todavia, ele parece certo das suas incertezas, bem como da fragilidade a que elas remetem. Esse ponto de vista se revela na metáfora: “Hoje oro sobre patins (…)/ O meu projeto Brasil perigas perder você”.

Tal verso sugere outro questionamento: qual seria o tal “projeto Brasil” que periclita se perder, dada a fragmentação do sujeito? É possível perceber como o eu lírico da canção se mostra consciente sobre a sua identidade difusa, diagnosticando a necessidade de ajustes: “Minha identificação registro geral/ Carece de revisão/ Cara, careta, dedão/ Isso não é legal em fase de transição”. Ademais, há o reconhecimento do contexto histórico a partir do qual a canção é entoada: momento de transição da ditadura civil-militar para a chamada redemocratização.

Já o tema da globalização estrutura Manhatã, canção que integra o disco Livro (1997). “Manhattan, Manhattan/ Um redemoinho de dinheiro/ Varre o mundo inteiro”, expressa o impacto da globalização econômica dos EUA como um leve leviatã. Leviatã (1651), além de ser um livro clássico do filósofo inglês contratualista Thomas Hobbes, representa uma figura mitológica que assombrou o imaginário dos navegantes europeus na era das grandes navegações. Apresenta, ainda, passagem no Livro de Jó como um poderoso monstro das águas.

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Contudo, em Manhatã o monstro é leve e, talvez, tão adocicado quanto a dicção do narrador e a cunhã, que tem o domínio desse demônio. Dada a conjuntura apresentada na canção, à personificação delicada do “leviatã” podemos chamar de capitalismo global, pois como sugere o narrador ele se caracteriza por um “redemoinho de dinheiro que varre o mundo inteiro”. Por outro lado, a sua leveza também pode ser compreendida como algo veloz, ligeiro. Por ser “leve” e “doce”, as guerras apenas “dançam (…) no meio da paz das moradas de amor”, como indica parte da letra. Ao entoar esses versos, a entrada das cordas faz com que a canção se suavize, configurando o lirismo e o romantismo que a frase revela. Na beleza da canção em conjunto com a suavidade do tema, as guerras não matam, nem oprimem, tampouco consolidam a dominação e a exclusão típica do capitalismo. É o símbolo da cunhã “iluminando o mundo”; uma luz que provoca “alegria” e “exaltação”.

Aqui vale um breve contraponto com Iracema Voou (1998), de Chico Buarque. Enquanto a canção de Caetano retrata a problemática de parte da globalização do ponto de vista estadunidense do processo, em Iracema Voou a questão é tratada do ponto de vista da periferia. Enquanto a índia do primeiro mundo em Manhatã tem o privilégio de dançar mediante as guerras, e ser uma “menina bonita mordendo a polpa da maçã”, a Iracema da canção de Chico Buarque situa-se do outro lado da ilha, embora esteja espacialmente no mesmo território. Pelo cotejo destas canções percebe-se a tematização do mesmo problema com orientações dissonantes. Os sinais trocados entre as canções também são notáveis pela estrutura narrativa das matérias cantadas. A doce cunhã de Manhatã é, em parte, responsável pela emigração da índia Iracema, bem como pela incorporação dos desejos que a fizeram voar. Contudo, a índia detentora das engrenagens da máquina, do brilho encantador que faz Iracema voltar os seus olhos para lá, morde a “polpa da maçã”. Já Iracema, limpa as sujeiras dessa polpa.

Diante dessas análises é fundamental reconhecer que “talvez o Brasil seja um dos poucos países do mundo onde uma canção ainda se apodera desses esboços políticos, dessas tentativas de experimentar outras maneiras de pensar e de reconstruir os percursos da sociabilidade humana”, como escreve Heloisa Starling em Uma Pátria Paratodos: Chico Buarque e as Raízes do Brasil, pois a música popular brasileira representa um importante bem simbólico capaz de desvelar aspectos significativos das mudanças e das peculiaridades do Brasil.

Como adverte em Língua (1984): “Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão”. Nessa certeza, as matérias cantadas de Caetano Veloso condensam em diferenciadas perspectivas as peculiaridades do país. Dada a presença da oralidade em prejuízo da constituição de uma cultura letrada em nossa formação, as sequências brasileiras também se realizaram nos ritmos, andamentos, melodias e harmonias que, na obra do artista, estruturam a passagem de uma cultura política nacional-popular à consolidação do capitalismo tardio.


*Daniela Vieira é doutora em sociologia pela Unicamp, professora de sociologia da Universidade Estadual de Londrina e autora do livro Não Vá se Perder Por Aí — A Trajetória dos Mutantes. Algumas canções aqui analisadas estão no texto A política das canções: Chico e Caetano como intérpretes do Brasil, enquanto a análise minuciosa delas está na tese As representações de nação nas canções de Chico Buarque e Caetano Veloso: do nacional-popular à mundialização.

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