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A bossa de Carlos Lyra

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h22 - Publicado em 8 Maio 2019, 13h55

O compositor fala sobre o “Além da Bossa”, seu primeiro disco de inéditas desde “Carioca de Algema”, lançado há 25 anos

Por Claudio Leal

A melodia de Sabe Você? inundava o apartamento quando a cantora Mart’nália ficou em pé para beijar a testa do compositor Carlos Lyra, que acompanhava em silêncio a audição de Mart’nália canta Vinicius de Moraes (Biscoito Fino), em cujo repertório estão outras duas parcerias suas com o poeta de Forma e Exegese: Minha Namorada e Você e Eu. Na casa dos jornalistas Sérgio Augusto e Maria Lúcia Rangel, cercados de amigos, duas gerações da música brasileira dividiam a escuta de seus novos álbuns.

Além da Bossa é o primeiro disco de inéditas de Lyra desde Carioca de Algema, lançado há 25 anos. Reconhecido como um dos maiores melodistas brasileiros, o compositor carioca completa 86 anos em 11 de maio. “Deu tudo certo com os 85 anos. Agora estou de olho nesses 86”, brincou Lyra, ao lado de sua mulher, Magda Botafogo. Pela primeira vez num trabalho autoral, ele somente canta. “É até melhor, eu me concentro mais”, disse, recordando-se da crítica positiva ao seu desempenho vocal nos jornais de Nova York. Em 2015, depois de arrebentar dois tendões do ombro, deixou de tocar violão.

O disco recuperou canções jamais gravadas por Lyra ou que apenas foram cantadas por outros intérpretes. O elenco de parceiros revela tanto a renovação de seu diálogo musical como a fidelidade do mestre bossanovista com nomes íntimos a sua trajetória: Ronaldo Bastos (Belle Époque), Marcos Valle (Até o Fim), João Donato (Pra Sempre), Joyce Moreno (E era Copacabana…), Paulo César Pinheiro (Tango Suburbano e Pelo Bem da Vida), Daltony Nóbrega (Além da Bossa) e Claudio Lyra (Passageiros). Ainda há parcerias atemporais, pois musicou poemas de Castro Alves, Lope de Vega e Machado de Assis.

“Loucas paixões/ Tantas canções/ Eu já tive ilusões/ Momentos bons/ Hoje com meus botões/ Penso que nada mais me engana”, canta em E era Copacabana…, antes gravada por Joyce e Emílio Santiago.

A presença de bolero e tango — e, claro, de sambas — confere sentido ao CD Além da Bossa. “A canção foi uma encomenda, justamente para dar título ao disco. Queria mostrar que o que se rotulou como bossa nova não é exatamente o que ela é. Bossa nova é uma maneira de compor com melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, letras coloquiais e pra cima e uma interpretação natural, cool”, afirma Lyra nesta entrevista. “Mas a mídia convencionou que bossa nova é o samba bossa nova que o João Gilberto toca e para o qual ele sintetizou a batida do samba que nós todos procurávamos”.

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Do violão de Lyra saíram as melodias de canções centrais na música brasileira moderna, algumas delas entre as mais célebres da bossa nova no mundo: Você e Eu, Coisa mais Linda, Influência do Jazz, Maria Ninguém, Canção que Morre no Ar, Minha Namorada, Ciúme, Lobo Bobo, Se é Tarde me Perdoa e Marcha da Quarta-feira de Cinzas.

Com produção musical de Alex Moreira e executiva de Magda Botafogo, o disco tem produção independente e pode ser ouvido no Spotify e no YouTube. Os discos físicos são encomendados através do e-mail carlos.lyra@infolink.com.br.

Nesse novo disco, você se concentra no canto, sem tocar violão. Causou-lhe estranheza ser somente intérprete de suas composições?

Na verdade, me deu liberdade. Antes, eu passava horas gravando o violão até ficar perfeito. Me preocupava com cada detalhe. Sou muito crítico. Dessa vez entreguei na mão do Flávio Mendes, que é um estudioso e que ouviu meus demos e tocou um violão muito próximo do que eu tocaria. Assim tive tranquilidade para me preocupar apenas com a interpretação. Fui cantando enquanto ele gravava o violão e buscando o melhor lugar para encaixar os versos. Se estivesse tocando, não poderia cantar. Me senti muito bem.

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O nome do disco, Além da Bossa (título de uma canção sua com Daltony Nóbrega), sugere também um desejo de transpor o rótulo de bossa nova. O que te incomoda no que se convencionou chamar de “bossa nova”?

A canção foi uma encomenda, justamente para dar título ao disco. Queria mostrar que o que se rotulou como bossa nova não é exatamente o que ela é. Bossa nova é uma maneira de compor com melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, letras coloquiais e pra cima e uma interpretação natural, cool. Me lembra muito a poesia provençal e os trovadores. Mas a mídia convencionou que bossa nova é o samba bossa nova que o João Gilberto toca e para o qual ele sintetizou a batida do samba que nós todos procurávamos. Mas bossa nova não é só samba. É qualquer ritmo, desde que a composição/ interpretação se encaixe na sua estética. Quando você engessa a bossa nova dentro de um ritmo, aqueles que não curtem aquele ritmo não escutam mais os compositores de bossa nova e assim seu trabalho não é ouvido. Rótulos são um desserviço!

Suas canções estão presentes nos três primeiros discos de João Gilberto, que se interessou bastante por suas melodias. Você vê distinções entre a sua bossa nova e a de João Gilberto?

Não há a minha bossa nova. Ela é uma estética e o João seu intérprete máximo. A diferença é que ele optou por interpretar as músicas sempre como sambas. E eu, como compositor, viajo pelos mais diferentes ritmos.

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Em seu novo disco, há o samba de breque Achados e Perdidos. O que te atrai nesse tipo de samba?

Nada diferente de qualquer outro ritmo. Eu sempre busco ritmos diferentes, que ainda não usei em minhas composições e dessa vez achei inusitado fazer um samba de breque. Essa música foi composta numa batalha de compositores num programa ao vivo na década de 70. Entrei na brincadeira e fiz esse samba com uma letra engraçada, e o breque dá a entonação que eu procurava. Mas a música acabou sendo censurada por “mexer” com a família brasileira e acabou ficando guardada até hoje.

Você e Tom Jobim são os dois músicos da bossa nova que têm parcerias com Dolores Duran, grande compositora de samba-canção. Como surgiram suas canções com Dolores, O Negócio é Amar e Se Quiseres Chorar?

Dolores era uma amiga querida com quem me encontrava frequentemente na década de 50. Tentamos fazer músicas juntos várias vezes. Ela me deu letras e eu dei a ela melodias. Uma noite, em 59, trocamos ideias sobre vários temas e na manhã seguinte ela morreria. Triste notícia que me abalou bastante e nunca mais mexi em nada relativo a ela. Uma tarde, em 1980, me liga o Hermínio Bello de Carvalho dizendo que a Marisa Gata Mansa, remexendo os cadernos da Dolores, havia achado uma letra e logo abaixo o meu nome e meu telefone. Ele me leu a letra e eu não lembrei de nada que eu tivesse mostrado a Dolores que se encaixasse ali. Disse ao Hermínio pra ele me dar um tempo. Peguei o violão e a música veio como se psicografada. Quarenta minutos depois eu ligava pra ele pra dizer: está pronta O Negócio é Amar. E a Marisa a gravou em 81.

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Se Quiseres chorar era uma letra que estava guardada e quando fui gravar um disco pro Japão, comecei a juntar repertório e lembrei dela. Demorei a perceber que era um bolero. Quando essa ideia ficou clara a música saiu logo. Isso já no final da década de 90. Uma música saiu em 40 minutos e a outra em 40 anos!

Entre 1966 e 1970, durante seu autoexílio, você viveu e trabalhou no México. É uma fase menos conhecida de sua biografia. No período em que viveu lá, você se interessou pela música mexicana, estabeleceu contatos com outros compositores do México?

É uma fase desconhecida da minha biografia porque não sou um name-dropper e nunca fui marqueteiro. Minhas incursões pela vida foram para o meu prazer e não para me divulgar. Sou mesmo low profile. Eu vinha do Teatro de Arena, e logo que cheguei ao México me entrosei com as pessoas de Teatro. Fui logo chamado para compor e ajudar na montagem de peças e récitas como o Cântico dos Cânticos de Salomão; a peça La Cueva de Salamanca, de Don Juan Ruiz de Alarcón, dirigida por José Luiz Ibañez; Fuenteovejuna, de Lope de Vega… Montei Pobre Menina Rica com tradução do Gabriel García Marquez, que era copydesk na McCann Erickson e meu parceiro nos jingles. Falando nisso, lembro de ele ter me dado o manuscrito de Cem Anos de Solidão pra ler. Montei meu infantil O Dragão e a Fada e ganhei cinco Deusas de Prata (o Oscar Mexicano) por autoria, direção do autor — melhor elenco, música, cenários e figurinos. Conheci os pintores muralistas Orozco e Diogo Rivera e o cineasta Buñuel, que, após me ouvir elogiar seus filmes, me disse que não poderia fazer o mesmo quanto à minha música, porque era surdo — e me perguntou se eu já havia percebido que em seus filmes não tem música! Tive experiências incríveis no México com poetas, atores, autores, diretores, artistas plásticos, cineastas e estudantes — pois cheguei a montar um CPC na Universidade do México — e fiz muitos shows por todo o país, além de gravar dois discos durante minha temporada por lá. Foi uma fase muito rica da minha vida. Eu era tão bem quisto que fui convidado pela Coca-Cola para ser El ninõ Coca-cola e fazer todas as propagandas relacionadas a ela. Me davam uma casa em Acapulco, carro com motorista, um salário, um cartão de crédito para eu usar à vontade e ainda um helicóptero à minha disposição pra me levar aonde quisesse. Uma proposta incrível, mas junto a ela a condição de não cantar minhas músicas como Maria Moita, Marcha da Quarta-feira de Cinzas, Canção do Subdesenvolvido e outras que iam de encontro com a “linha” da Coca-Cola. Como sempre, minha integridade falou mais alto, pra desespero do meu empresário na época.

A bossa nova e suas canções foram marcantes para a geração tropicalista. Caetano Veloso gravou Coisa Mais Linda e citou você em Saudosismo e A Bossa Nova é Foda. Se é Tarde me Perdoa esteve no repertório inicial de Gal Costa, ainda na Bahia. Gilberto Gil já gravou Ciúme e Você e Eu e expressou admiração por suas melodias. O que você pensa sobre a intervenção do Tropicalismo na música brasileira?

Acho que a época foi perfeita pra eles aparecerem com aquela atitude questionadora, libertadora e experimental. O Brasil dos moços e moças da bossa nova, comportados, passara por um golpe que alijava a cultura brasileira e o Tropicalismo chegou para afrontá-los. E chegaram com qualidade musical e poética. E assim houve a transformação para o que se rotulou MPB.

Como o autor da Canção do Subdesenvolvido e do Hino da UNE, além de fundador do Centro Popular da Cultura (CPC), nos anos 60, avalia o fortalecimento da extrema direita no Brasil? Ainda acompanha atentamente a política brasileira?

Pra ser sincero, não leio nem assisto a noticiários. Descobri que isso me envenena. Mas é claro que as notícias chegam e eu acompanho sem me aprofundar. O fortalecimento da extrema direita está sendo um fenômeno mundial e pensando a respeito acho que isso pode se dever aos escândalos e à má administração dos governos de esquerda que ficaram um bom tempo no poder. O povo quer mudança, a educação está em crise e as pessoas votam com raiva e de maneira inconsequente.

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