Poeta, romancista, musicólogo, folclorista, fotógrafo, crítico literário, ativista cultural brasileiro, simplesmente Mário de Andrade. Essa figura multifacetada que tanto contribuiu com a construção da arte brasileira foi um incansável explorador da cultura nacional.
Nascido em São Paulo em 1893, ele mergulhou na efervescência modernista, rompendo barreiras e abrindo caminhos para novas formas de expressão. Com obras como “Pauliceia Desvairada” (1922), uma coleção de versos livres em ritmo frenético e imagens inovadoras, “Macunaíma” (1928), com o anti-herói sem nenhum caráter, em que o autor satiriza a formação do povo brasileiro em uma narrativa épica – ou mesmo na música, onde dedicou-se à pesquisa folclórica, compondo obras que incorporam elementos populares e eruditos, Mário de Andrade provocou reflexões que ecoaram através do tempo.
De 22 de março a 9 de junho, o Masp — Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand apresenta parte dessas inúmeras camadas de quem foi o artista, com a mostra Mário de Andrade: duas vidas, que reúne um conjunto de 88 obras selecionadas do acervo pessoal do intelectual.
A curadoria é assinada por Regina Teixeira de Barros com assistência de Daniela Rodrigues e contempla pinturas, desenhos, gravuras, esculturas e fotografias que evidenciam a perspectiva queer nas obras, vida e legado de Mário. O eixo curatorial de 2024 do Masp, vale lembrar, são as Histórias da Diversidade LGBTQIA+.
Correspondências íntimas revelam “duas vidas” do autor
A curadoria da exposição parte de um ponto de partida intrigante: a dualidade presente na vida de Mário de Andrade. “Ele diz que todo mundo tem duas vidas: a social e a particular”, afirma Regina. Essa dualidade se evidencia por algumas cartas do escritor, especialmente quando, há quase dez anos, em 2015, todos os seus escritos caíram em domínio público e sua produção literária começou a ser analisada à luz de suas preferências homoafetivas.
Uma delas chamou a atenção da curadora: o trecho de uma correspondência que havia sido cortado de um livro. A carta em questão havia sido enviada para Manuel Bandeira, em 1928. Nela, Mário escrevia sobre a sua “tão falada homossexualidade”, como descreveu.
Neste e em outros escritos, o autor discorreu sobre sua perspectiva quase que oposta das camadas de sua personalidade, em que caracterizava um lado como a “vida de cima” e a “de baixo”, e que cada um funciona de maneira própria, como se não se interligassem. “A ‘vida de cima’ seria a pública, marcada pela intelectualidade, pela música e pela crítica literária. Já a ‘vida de baixo’ seria a privada, permeada por desejos e relações homossexuais”, explica a curadora.
A historiadora de arte também explica que, desde 2015, data que completou o marco de 70 anos da morte de Mário, sua produção literária vem sendo examinada por vários acadêmicos e críticos de literatura com mais afinco. Dentre esses trabalhos publicados, Regina ressalta o do doutor em literatura comparada pela Universidade da Califórnia, chamado César Braga-Pinto, que traçou a maneira como o assunto foi tratado no decorrer dos anos e chegou a duas conclusões: ou não se falava do assunto ou tratava a sexualidade de uma maneira sublimada, como se Mário lidasse somente por um viés fantasioso.
A autora Eliane Robert Moraes, por exemplo, também se dispôs a analisar a profunda inquietação em torno do sexo trazida por Mário em seus escritos, e reuniu em Seleta Erótica (2022) diversos textos, contos, poemas e trechos de livros do autor que exploravam o tema de alguma forma.
“Ele lidava com a questão da sexualidade em um tom confuso, frustrante, sempre trazia um desacerto. Uma certa inquietação. Não era um tema fácil para o Mário. Muitas vezes, também colocava os personagens na primeira pessoa […]. Assim, fomos encontrando traços, vestígios e indícios de como falava da sexualidade dele”, complementa. “Em uma de suas correspondências, Mário chegou a dizer que se considerava pansexual, mas não no sentido que entendemos hoje, no lugar de que é capaz de amar tudo. A natureza, o mundo. Um amor idealizado onde a sexualidade tem muita dificuldade de se realizar”.
A descoberta do Brasil e a moldagem do Modernismo
Nos anos 1920, ao lado de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e outros modernistas que inauguraram o movimento a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário mergulhou nos estudos sobre a descoberta do Brasil. Viagens a Minas Gerais e Rio de Janeiro alimentaram sua sede de informação. Música erudita e popular, arquitetura e arte colonial, tudo era absorvido por seu olhar ávido.
Essa busca se expandiu para o Norte do país na década seguinte, quando Mário passou a realizar levantamentos etnográficos. A curiosidade pelo Brasil e a reflexão sobre as relações e identidades nacionais permearam esse período, resultando em obras famosas como “Macunaíma”, rapsódia épica que satiriza a formação da identidade nacional, e “Amar, Verbo Intransitivo”, romance que explora a vida interior de uma jovem em meio à sociedade paulistana.
A partir dos anos 1930, Mário se engajou em uma fase mais político-social. Reinterpretando a Semana de 22, ele criticou a falta de engajamento político dos artistas da época. Essa nova postura o levou a trabalhar na futura Secretaria de Cultura de São Paulo e a criar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pioneiro na preservação do patrimônio cultural brasileiro.
“Tudo para ele era informação. Mário lutou para que a memória das manifestações brasileiras fossem preservadas”, aponta a historiadora.
Tamanha curiosidade e sede por conhecimento, o levou a construir seu legado como poeta, romancista e um verdadeiro escritor apaixonado. Sua obsessão era registrar a língua brasileira em sua forma autêntica, distante dos padrões literários tradicionais. Essa particularidade rendeu-lhe um lugar especial na literatura brasileira.
Ao contrário de seus contemporâneos, que buscavam emular a norma culta europeia, Mário mergulhou na riqueza da fala popular brasileira. Seu vocabulário, repleto de regionalismos, expressões coloquiais e gírias, conferia aos seus textos uma veracidade e um frescor únicos. Mário buscava recriar a linguagem do cotidiano, com suas contrações, vícios de linguagem e ritmo próprio. Essa escolha estética não era apenas um capricho, mas uma forma de aproximar a literatura do povo brasileiro e de celebrar a diversidade cultural do país.
Mais do que um escritor inovador, Mário de Andrade foi um visionário. Ele compreendeu que a língua portuguesa falada no Brasil era uma entidade viva e em constante transformação, e que merecia ser valorizada e preservada.
Um olhar queer do acervo do artista
A exposição do autor, já disponível no Masp, oferece um olhar inédito sobre a vida e a obra do escritor e intelectual brasileiro. Por meio de um recorte da sua coleção pessoal, a mostra revela a sensibilidade queer presente na formação estética de Mário de Andrade. Segundo a curadora coordenadora, é possível dividir a exposição em três grandes núcleos.
1. Autorretratos e a leitura racial de Mário vista por outros artistas
Um deles explora a maneira como Mário era retratado por seus contemporâneos e por ele mesmo. Obras como o retrato de Tarsila do Amaral, que o apresenta de forma “embranquecida”, contrastam com a obra de Candido Portinari, onde Mário aparece sem óculos, quebrando um pouco o aspecto de intelectualidade dada pelo acessório, com a camisa levemente aberta, ombros largos, pele mais escura e uma paisagem infinita ao fundo.
A exposição também apresenta autorretratos de Mário de Andrade, revelando o modo como ele se via e suas diferentes facetas.
2. Desenhos: uma linha tênue entre efemeridade e poesia
Outro núcleo da mostra se dedica aos desenhos de Mário de Andrade, que fazia uma diferenciação entre essa forma de arte com a pintura. “Para ele, o desenho é o registro de algo fugaz. É algo mais efêmero, não tem essa pretensão. Ele associa a uma poesia, como um haikai ou soneto, e dizia que desenhos são para ser folhados. Enquanto a pintura é algo para ser visto na parede”.
A exposição apresenta uma seleção significativa de desenhos de Mário de Andrade, guardados em pastas e revelando sua intimidade. Entre os trabalhos feitos em papel, encontramos nus masculinos, retratos de trabalhadores – com quem tinha uma grande identificação – com retratações variadas, desde homens no bar e jogadores de rúgbi, por exemplo.
“Tem uma projeção de um olhar queer ao esporte, que é um lugar legitimado, da mesma forma que as imagens sacras. Cristo na cruz, por exemplo, traz uma tradição da pintura europeia que representa um homem jovem, muitas vezes loiro, de pele clara e olho azul, seminu. E na escultura idem, com seres crucificados. A pintura e a imagem sacra tem um lugar permitido socialmente de projeção queer”.
Associando o desenho à poesia, a curadora destaca a natureza dessa expressão artística da mesma forma íntima e cuidadosa que o autor descrevia em seus escritos.
3. Fotografias: viagens e experimentações
As fotografias de viagens que Mário de Andrade fez ao Norte e Nordeste do Brasil também estão presentes na exposição. Regina ressalta que, das 900 fotografias que ele tirou nessas duas viagens, a maioria retrata homens, e em algumas delas, o artista reproduzia e ampliava a imagem, trazendo recortes, ângulos e experimentações diferentes.
As fotos capturam homens em situações adversas, desde trabalhadores braçais, como pescadores ou remadores, até outros em momentos de lazer, seja olhando diretamente para a câmera ou em situações cotidianas. A curadora destaca também que, após revelar as fotos, Mário continuava escrevendo sobre as imagens, formando assim um dossiê, que nomeou de “Turista Aprendiz“, obra que não foi publicada na época.
Entretanto, Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo organizaram e publicaram essa seleção de fotografias tiradas por Andrade. Dentre estes três núcleos principais, Regina destaca as fotos que Mário tirou de si mesmo, onde é possível vê-lo em poses mais divertidas, fantasiado ou mesmo relaxando, destacando um lado menos conhecido do artista.