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O brilho de Antonio Pitanga

Com uma carreira de mais de 60 anos, o ator e diretor lida com um novo desafio ao dar vida ao clássico da literatura de Saint-Exupéry

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 19 jan 2024, 16h36 - Publicado em 19 jan 2024, 11h41
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Antônio Pitanga lê "O Pequeno Príncipe" (Audible/divulgação)
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Antonio Pitanga é uma espécie de realeza, não no sentido opressor e opulento que se coloca acima dos demais, mas sim naquele que encanta as pessoas, que carrega um espírito de liderança e um brilho próprio. No entanto, sua grandeza vai além; ele é um exímio contador de histórias, capaz de prender a atenção de seu público por horas a fio, deixando-o completamente imerso. Dizem que ao longo dos anos de experiência nos palcos, alguns atores desenvolvem uma presença inexplicável, capaz de cativar os olhares da audiência. É precisamente esse tipo de realeza ao qual nos referimos aqui – a de um artista atingindo sua máxima potência e revelando toda a sua humanidade.

O dom de contar histórias vem de décadas e, sem dúvida, Pitanga o possui em abundância. Não é por acaso que ele foi escolhido para dar vida a um clássico da literatura infantojuvenil, um dos mais aclamados e traduzidos mundialmente: “O Pequeno Príncipe”, obra do francês Antoine de Saint-Exupéry, lançada em 1943. O convite veio da Audible, uma das principais plataformas de entretenimento de áudio do mundo, que conta com um acervo de mais de 600 mil títulos de audiolivros e podcasts. Nesta sexta-feira (19), a interpretação de Antonio Pitanga passa a integrar o catálogo da plataforma, permitindo aos ouvintes-leitores a chance de reimaginar esta antiga história, tornando-a ainda mais assessível para PCDs.

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Pequeno príncipe (Audible/divulgação)

Nos últimos anos, houve um desgaste do romance que conta a história de um aviador que, após sofrer uma pane em seu avião, encontra-se perdido no deserto do Saara e conhece o Pequeno Príncipe, um garoto de outro planeta, o Asteroide B-612. Talvez pelo excesso de compartilhamento de algumas das frases do livro, como “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” ou “O essencial é invisível aos olhos”, a obra tenha perdido um pouco de seu encanto entre os leitores. Afinal, a repetição exagerada costuma esvaziar o sentido das coisas.

O artista, um dos primeiros negros a protagonizar e dirigir filmes nacionais, e que esteve na linha de frente da criação do Cinema Novo, vê um forte paralelo entre o início de sua carreira, quando trabalhou como tipógrafo, e sua participação na leitura do clássico. Antonio encara o convite como uma grande coincidência e uma oportunidade de “olhar pelo retrovisor” de sua vida.

“Não sei se o pessoal jogou búzios antes de me convidarem”, brinca ele, em entrevista à Bravo!. “Há uma vivência na minha história que me credencia, sem querer, de uma maneira deliciosa a participar deste projeto, que tem tudo a ver comigo. Eu poderia ter feito ‘O Pequeno Príncipe’ na década de 1940. Por que não? Poderia ter impresso e encadernado este livro”, continua.

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(Audible/divulgação)

O encontro com o cinema

Antonio e o livro “O Pequeno Príncipe” poderiam ser irmãos com poucos anos de diferença. Pitanga, o mais velho, nasceu em 1939, em Salvador (BA), no Pelourinho, ele faz questão de destacar. “Ninguém nascia no Pelourinho por acaso no final da década de 1930. As igrejas construídas por mãos negras eram frequentadas pelos brancos, enquanto os negros permaneciam de pé, ao fundo. Então, eles se mobilizaram e ergueram uma da qual pudessem participar de todas as atividades, a Rosário dos Pretos, onde fui batizado.”

Dos quatro filhos de Maria da Natividade, Antonio foi o único a estudar em colégio interno. Apenas adulto, entendeu o motivo. “Era o mais peralta, o brigão dos filhos. Estudei no Colégio São Joaquim, com 10 anos, e lá aprendi todas as profissões. Ali está o meu começo de aprendizado e de leitura do mundo. Já saí de lá pronto para trabalhar. Então, escolhi a tipografia.”

Mas queria dar passos além, então prestou o concurso para entregar telegramas na Western Telegraph Company. “Escolhi essa empresa porque me dava dignidade, cidadania. Me deram uma bicicleta e um uniforme. Lá, eu conheci um diretor de cinema, Luís Paulino dos Santos, que era também fotógrafo de O Mundo Ilustrado. Mais tarde, trabalhei com ele em alguns filmes.”

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(Audible/divulgação)

Por mais curioso que pareça, foi lá que o mundo do teatro e do cinema foram apresentados a Pitanga. Todos os dias, caminhando de volta do trabalho, pela Rua Democrata, ele passava por um casarão branco, cheio de grades. Bem ao fundo, ele conseguia ver algumas pessoas fazendo movimentos estranhos. E com o passar dos dias, percebeu que eram atores.

O local era o Clube Fantoches da Euterpe (rebatizado mais tarde para Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe), um espaço que ajudou a definir o carnaval moderno de Salvador. “Um dos rapazes, Valter Weber, ao me ver observando pelas grades, perguntou se eu gostaria de ser figurante em um filme que estava prestes a ser realizado em 1958, dirigido por Trigueirinho Netto, chamado Bahia de Todos os Santos (1960). Aceitei o convite e, ao chegar lá, deparei-me com mais de 50 homens negros, altos e fortes, que iam fazer o teste para interpretar o papel de Pitanga.”

Quando foi apresentado a Trigueirinho, Antonio (que ainda não era Pitanga) indagou se ele poderia fazer o teste também. “Ele respondeu: ‘Não, você é baixinho. Preciso de um negro alto que saiba jogar capoeira.’ Não me dei por vencido e retruquei: ‘Mas você não me viu em ação. Me dá 10 minutos.’ Ainda não era ator, mas minha ousadia fez com que ele me desse a chance de participar; foi aí que ganhei ele.” Antonio estreou como ator em 1960, com o personagem Pitanga. O impacto da experiência fez com que ele mudasse definitivamente o nome de Antonio Luiz Sampaio para Antonio Pitanga.

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(Oscar Cabral – 2003/rede Abril)

Pitanga e Glauber

Há uma singularidade na vida de Pitanga: sua trajetória foi marcada por encontros inusitados. No mesmo dia, no momento em que estava fazendo o teste para Trigueirinho, apareceu um jornalista, que escrevia para o Diário dos Associados, para entrevistar o cineasta. O então jornalista: Glauber Rocha. Glauber viu Pitanga em cena, e em seguida travou conversa com o jovem. “Ele me perguntou assim: ‘Você quer ser ator?’ Eu disse que sim. E ele respondeu: ‘Então, você tem que fazer teatro’. Respondi que teatro era para gente rica, que as aulas eram sempre à tarde, eu trabalhava e morava numa pensão.”

Glauber propôs lhe ajudar. “Ele falou o seguinte: ‘Minha família vai oferecer uma refeição por dia para que você possa se dedicar ao teatro’. Ele me levou até a casa da mãe dele, a tia Lúcia, onde conheci o pai e a irmã. E eu passei a fazer parte da família. Quando Glauber chega e me convoca como amigo, passo a integrar os movimentos estudantis e culturais da Bahia, pois ele era uma liderança importante.”

Todas as segundas, Pitanga ao lado de Glauber, frequentava o café da livraria Civilização Brasileira (que foi destruída mais tarde por um incêndio), na Rua Chile, em Salvador. Ali, eram acompanhados de figuras como o dramaturgo João Ubaldo, o cineasta Roberto Pires, o artista plástico Carybé, o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger. “Éramos leitores de orelhas de livros porque não tínhamos dinheiro. Líamos todas as orelhas dos best-sellers e depois debatíamos. Esse movimento foi criando um cine-clube, que era de um cara apaixonado por cinema, Valter da Silveira. Todos os domingos, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, assistíamos às janelas possíveis do cinema global. Desde “O Encouraçado Potemkin”, “Roma, Cidade Aberta”, até “Ladrões de Bicicleta” e depois discutíamos.”

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Naquele período, o cinema brasileiro ainda sofria com resistência do público, em detrimento de títulos internacionais. “Extraímos o elemento mais fundamental, que foi introduzir a nossa cultura nesse universo, através do cinema brasileiro. Durante muitos anos, foi desafiador para o público aceitar nossa linguagem. A musicalidade do texto brasileiro incomodava o brasileiro devido à influência da colonização cultural. Foi uma tarefa difícil superar essa barreira”, conta o ator sobre o movimento do Cinema Novo. “Esses jovens entusiastas, liderados por Glauber, Cacá Diegues, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Walter Hugo Khouri, constituíram o núcleo desse movimento enriquecido por teatro, poesia, literatura e artes plásticas. E fomos vitoriosos no sentido de fazer o público brasileiro compreender a força de sua própria cultura.”

Além dos efeitos no audiovisual brasileiro, fazer parte daquele grupo deu a Pitanga mais confiança sobre seu novo ofício. “O movimento me deu segurança e autenticidade para dizer ‘Estou no lugar certo, fazendo a coisa certa’. Me dava confiança para fazer uma interpretação original e brasileira, do meu jeito, porque eu não estava alicerçado em nenhum tipo de postura. Não havia o embasamento profundo de [Bertolt] Brecht ou [Constantin] Stanislavski. Até hoje, quando faço filmes, eu não quero nenhum movimento, quero entrar desarmado. No cinema, para ser humano, tem que ser simples.”

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(Audible/divulgação)

Cativar o mundo

Recentemente, o ator estrelou o filme Tia Virgínia, de Fabio Meira (indicado como um dos Melhores do Ano pela redação da Bravo!) e a novela “Amor Perfeito”. Ademais, Pitanga tem vivido outro desafio: finalizar o filme Malês, um projeto que o acompanha há mais de 20 anos. “Estou há 26 anos matutando, desenhando, construindo. Há 12 anos que estou com a roteirista Manuela Dias e com o produtor Flávio Tambellini. Quero falar desses negros sequestrados, escravizados da região Norte da África. Desses negros que tinham conhecimento da Física, da Engenharia, da Aritmética, da Educação e que se organizaram na Bahia em 1835, e fizeram o mais importante levante do país, em Salvador. A história desses negros que não consta na história propriamente dita. Estamos trabalhando com a possibilidade de levar o filme para o Festival de Cannes. É a primeira janela internacional em que quero mostrar.”

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Seu legado, além de espelhar em mais de 70 filmes e 50 telenovelas, entregou ao mundo mais dois atores talentosos: os filhos Camila e Rocco Pitanga. É neles que o artista pensou quando voltou a ter contato com “O Pequeno príncipe”, em suas infâncias e como precisou se moldar para criar uma relação de igual para igual com os filhos ainda pequenos. Ser pai, afinal, é um pouco como ser ator, afinal. “Para entender os meus filhos e não ser o senhor verdade, eu precisei estar desarmado para poder interagir e ouvir eles. E para entender o Pequeno Príncipe, tudo isso serviu de fonte. Essas lembranças me trouxeram naturalidade ao ler as fábulas do livro. Você consegue isso quando não está preso pela técnica, quando está desarmado. Preciso estar nesse espírito juvenil. Mas eu posso errar também.” Reflexivo, ele conclui: “Acho que eu ganho mais quando erro.”

E há uma lição que recuperou com a interpretação do audiolivro. “Uma das coisas mais bonitas nele é a ideia de cativar. Se todos nós tivermos esse gesto de cativar, mudamos o mundo.”

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