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Acervo da Laje: dos arredores ao além dos muros

José Eduardo Ferreira Santos fala sobre o surgimento, as perspectivas filosóficas e as ações necessárias para manter o Acervo no presente e futuro

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 2 out 2023, 16h02 - Publicado em 2 out 2023, 13h32

O que é contemporâneo? Entre centenas de definições, esboçaremos uma: aquilo que está perto. Se a aceitarmos, podemos então afirmar: o Acervo da Laje, fundado por José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, é uma das iniciativas mais pungentes da arte contemporânea no Brasil e no mundo.

Por que? O Acervo da Laje é montado a partir de obras de artistas do Subúrbio Ferroviário de Salvador e se constituiu enquanto museu-casa-escola. Discutiremos isso a seguir. Também reflete as tensões, soluções, afetos, expressões e anseios do seu território e a partir do seu território. Ninguém fala por ninguém. E ainda elabora soluções para questões como representatividades, territórios, corporeidades, pertencimentos, tradições e a capitalização disso tudo por instituições alheias ou não. Aliás, talvez essa seja a única instituição de arte validada que se mantém verdadeiramente próxima das filosofias, estéticas, poéticas e cosmogonias da maioria da população soteropolitana e brasileira, negra e pobre. O Acervo da Laje mantém em si mesmo um segredo que, para mirar, tem que ir lá. Tem que andar da Rua Nova Esperança à Travessa Sá Oliveira e encontrar o Acervo incendiando o que se entende por cultura, arte, comunidade, periferia, poética, negritude e tudo o mais. Uma parcela da sua proposta pode ser encontrada nas exposições: Ensaios para o Museu das Origens, no Itaú Cultural; Dos Brasis, no SESC Belenzinho; Brasil Futuro: as formas da democracia, no Solar do Ferrão; e, a a partir de setembro, em sua própria exposição em homenagem à Dona Antônia na sede do Acervo da Laje, no bairro São João do Cabrito. Alerta: sem a experiência, é grande o risco da incompreensão. Para dimensionar verdadeiramente, conheça. Enquanto você não chega, confira a entrevista.

Fotos da exposição
Fotos da exposição “Brasil Futuro” no Centro Cultural Solar Ferrão. (Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Eduardo, para quem não esteve aqui e não conhece o Acervo da Laje, como você apresentaria o lugar e a si mesmo?
Eu sou José Eduardo Ferreira Santos, tenho 48 anos e formação em pedagogia, mestre em psicologia e doutor em saúde pública. Sou professor e pesquisador. Nasci aqui no Subúrbio, nessa casa, na Rua Nova Esperança. Eu trabalho no Acervo da Laje junto com Vilma Santos desde 2010. Vilma é minha companheira. Nos conhecemos na juventude e estamos juntos há 14 anos. O Acervo começa depois de uma pesquisa que eu tinha feito sobre repercussões de homicídio entre jovens aqui na periferia, quando um professor chamado Gey Espinheira me pede para estudar a beleza do território. Isso quer dizer que estudar a beleza talvez seja mais eficiente do que estudar violência, porque já sabemos os ciclos da violência.

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(Marco Iluminati | Acervo da Laje/reprodução)

Então, começo a fazer uma pesquisa com um fotógrafo italiano chamado Marco Illuminati. Começamos a mapear todo o território através de fotos de paisagens, de ruínas, de terreiros que estavam sendo destruídos na época da reforma do Parque São Bartolomeu. Todo mundo dizia que tinha artista aqui, mas ninguém tinha a materialidade da obra. Então, em 2010, descobrimos cinco artistas que morrem: Dona Coleta de Omolu, cantora, Almiro Borges, pintor, Otávio Bahia, escultor em madeira, dentre outros. Decidimos sair procurando onde é que estavam essas obras, rodando praticamente Salvador inteira: Mercado Modelo, brechós, antiquários…

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(Marco Iluminati | Acervo da Laje/reprodução)

Encontramos os primeiros trabalhos de Otávio Bahia no Mercado Modelo, uma máscara de Iemanjá. A partir dali não parou de crescer. Era um contraponto às situações de violência, porque assim, tem que pensar que essa garotada toda das periferias, na maioria das vezes, não tem na circunvizinhança delas espaços de arte. Isso incide diretamente na elaboração, orientação para o futuro, projeto de vida ou quaisquer outras formas de repertórios que não sejam aqueles que são “dados”, digamos assim, para as periferias. Aí começamos a comprar, comprar, comprar muita obra. Depois, passamos a achar muita obra descartada: carrancas, esculturas, quadros, obras de artistas até importantes daqui, porque as pessoas jogavam fora. Depois disso houveram doações, porque as pessoas entendiam que, como acervo, não vendíamos nada. Isso criava uma relação de um lugar de memória.

Como essa casa deixa de ser um espaço de moradia e se transforma num espaço dedicado às obras do Acervo?
Depois que fizemos a exposição Cadê a bonita?, lá na Galeria Pierre Verger, com 50 ou 60 mulheres daqui do território, fotografadas em pose bem clássica, decidimos trazê-la pra cá. Tinha um projeto expográfico maravilhoso, com paletes que se entrecruzam, marcados para terem fotos vistas de diversas formas. Quando esse paletes vieram para cá, tivemos que ir embora da casa, porque cada sala lá de cima tinha um palete gigantesco com mais de 50 fotos para ver. Então alugamos uma casa para morar. Já a casa 2 começou a ter um fluxo de obras muito grande, porque começamos a ganhar de artistas do Brasil, então vimos que tinha que ter um espaço maior para ser casa-museu-escola.

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(Acervo da Laje/reprodução)

Que conceito é esse de museu-casa-escola? Tem algo de Lina BoBardi?
Não, quando pensou não tinha. Foi só depois que o povo da arquitetura falou que o MAM, na concepção da Lina, seria um museu-escola. Mas conosco aconteceu o seguinte: como Vilma dava aula de reforço escolar e eu sou orientador de pós-graduação, muita gente ia para lá. Era espaço de conversa, de orientação. Então ficou acervo, casa e escola. Tem oficina quase toda semana. Tem o Acervinho, que criamos no início do ano, porque as atividades para crianças são fundamentais, elas têm que ter protagonismo, né? A dinâmica também é de casa porque lá você vai conversar, vai comer, vai beber, vai ter uma sociabilidade diferente daquelas dos museus. E somos cadastrados no Ibram [Instituto Brasileiro de Museus] como um museu, porque guardamos a memória desse território, temos artefatos históricos.

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(Acervo da Laje/reprodução)

E quais foram as primeiras experiências do Acervo da Laje com outros museus?
Em 2014, com a Bienal da Bahia. Teve um público muito muito forte aqui, muita gente vinha ver porque, de fato, se você pensasse a Bienal, ela tinha muita centralização no centro da cidade, mas foi espraiada demais. Foi para o Arquivo Público e veio para o Subúrbio aqui no Acervo. Tivemos um público de visitação muito forte. Eu lembro que, quando vieram conversar, antes tinha vindo o pessoal da 31ª Bienal de São Paulo para convidar-nos para ir para lá. Havíamos terminado um trabalho sobre arte invisível e enraizamento na produção cultural dos artistas de periferia. Nós não recebemos um centavo, mas queríamos entender o sistema da arte, entender de arte em si, de curadoria, porque não queríamos fazer do Acervo da Laje algo menor em relação às artes. E aí foi a potência. Vários artistas começaram a vir. Conhecemos muita gente do sistema de arte, muita gente mesmo.

Depois da Bienal, outro movimento importante foi a chegada do Goethe Institut com a residência Vila Sul, que começava a trazer artistas de todo Sul Global para o Brasil. Conhecemos gente pra caramba! Na pandemia, ganhamos alguns editais, dentre eles um do Goethe, para fazer a reforma, fazer o site. Quando o site vai para o ar, aí vem aqui Keyna Eleison, diretora artística do MAM-Rio, e convida a gente para a exposição A memória é uma invenção (2021-2022). Foi nossa primeira exposição fora daqui, uma ocasião que fomos muito bem cuidados pela equipe do museu. Foi bom para aprender o que é seguro, o que é conservação, aprender um monte de coisa.

“O Acervo começa depois de uma pesquisa que eu tinha feito sobre repercussões de homicídio entre jovens aqui na periferia, quando um professor chamado Gey Espinheira me pede para estudar a beleza do território. Isso quer dizer que estudar a beleza talvez seja mais eficiente do que estudar violência, porque já sabemos os ciclos da violência” – José Eduardo Ferreira Santos

Aí depois fizemos o MAM-Bahia com Subúrbio: uma exposição em três atos, uma exposição processual em que, em três meses, ocuparíamos a galeria 3 de forma nunca vista antes. Ninguém esperava aquilo. Começamos com os quadros na parede e quando terminou… Só faltou o barco indo e vindo que Fabrício Cumming, o nosso produtor, não deixou, porque era época de eleição, não tinha mais dinheiro, aquela coisa toda de verba pública. Por fim, Lisette Lagnado, Yudi Rafael e Ayrson Heráclito nos convidam para A Parábola do Progresso (2022-2023), no SESC Pompeia. Voltando dessa, a gente já tinha mandado César Bahia para o MAR. Foram 240 peças para a exposição César Bahia: uma Poética do Recomeço (2023).

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Nós vamos a cada exposição que abre, passamos cinco, sete, 10 dias com a equipe de montagem, com a curadoria. Nada é vertical, tudo é horizontal. Por exemplo, tanto na Parábola, quanto no MAR ou no MAM, é tudo dialogável. Aqui com Lilia Schwarcz foi “pinto no lixo”, porque a gente se cuidou, a gente se tratou, a gente delegou coisas, a gente pensou tudo ali junto. Não teve o olhar da pessoa individual, tudo foi junto desde o início, porque não queríamos reduzir o Acervo da Laje a uma experiência de projetos sociais, por exemplo. Estamos lidando com estética, e as estéticas da periferia têm uma coisa que ainda não está nos grandes museus.

O que é?
Essa vida, essa energia, esse desejo de mostrar tudo sem vergonha, de não ter esqueleto dentro do armário, de não ter obra surrupiada, de não ter obra falsificada, de não ter roubo, de tudo público, aberto, mostrado. E aí você começa a entender que a arte é uma expressão da sensibilidade, da elaboração, da técnica, do refinamento e das poéticas que a gente encontra em pessoas pretas. Por que todo mundo vem para o verão em Salvador? Eles vêm para cá no verão, pegam o fervo todo, pega essa energia toda que a gente ainda tem, e vai gastar essa energia o ano todo. Então, entendemos que é um espaço de arte antes de tudo. E, olhe, validado por muita gente. Mas antes de ser validado por muita gente, nós validamos, nós nos consagramos.

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(Marco Iluminati | Acervo da Laje/reprodução)

Quando fizemos o Acervo da Laje, veio um arquiteto que disse que laje não é lugar para obra de arte. Aí Léo Souza fez um compilado com matéria de jornal, revista, coisa do YouTube e mandou para ele: “aqui, ó, mandaram te entregar esse dossiê”. Laje também é lugar de exposição de artes visuais. Se você tem uma esquina, consagre para obra de arte! Se você tem um campinho, faz! Se você tem uma casa abandonada, faz! Se a gente não ocupar esses espaços periféricos, outras forças não tão agregadoras vão ocupar. Tem que começar a ocupar os espaços que vocês têm porque se você ficar esperando galeria, museu, olha…

O primeiro museu é a casa da gente! Tanto que a primeira exposição que fizemos foi em 2011 na casa de Vera Lazzarotto, de um casal de uma família histórica que organizou a comunidade na década de 1970. Quando a gente botou uma parede de máscaras, quadros e tal, o que aconteceu? Pela primeira vez as pessoas viram aquele volume de máscaras, de quadros, e se emocionaram. Quem falaria de curadoria no espaço periférico há 10 anos? Ninguém! Iriam dizer que você não é capaz de falar de curadoria. Agora, fomos para o MAR dar oficina na Escola do Olhar, um menino virou para mim e disse: “mas professor, como é que a gente faz tanta exposição e ninguém nunca considera curador?”. Eu disse: “meu filho, até pra ser curador você precisa estudar muito!”. Você tem que ler história da arte brasileira, tem que ler tudo de arte, ler catálogo, aprender a criticar. Ontem, fiz esse exercício no curso que eu tô dando: peguei minhas pranchas com quase 50 desenhos de flor, e aí comecei a projetar e fui criticando com os meninos. Fala, aprende a colocar a veia da inteligência, da sensibilidade, no objeto do teu trabalho. Porque aí você vai selecionar, depois vai fazer um exercício de curadoria de selecionar 10 obras dentro de 70. E depois sete, cinco, três, até chegar na obra-prima. Muitas vezes você pode ter cargos e não tem esse refinamento. E aí eu queria conciliar a arte popular. Tirá-la do lugar de arte popular e colocá-la como arte-arte. Queria nomeá-la com a autoria de seus artistas porque o Brasil fez um processo de apagamento muito grande. Eu queria reconciliar.

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(Acervo da Laje/reprodução)

Como é esse seu projeto de pegar a arte dita popular e considerar como arte-arte? Como é que é isso?
O modernismo brasileiro estava nas favelas, estava nos manicômios, estava onde o povo estava. Estava também no litoral. Essa é uma tese que ninguém sustenta. Mas, por exemplo, nós do litoral éramos mais globalizados na época do que São Paulo. Aí, o que acontece? A galera de lá tinha dinheiro, e quem tinha dinheiro podia visitar todos os estados e selecionar o que tinha de melhor. É uma discussão que ninguém fala porque senão você mexe nas cabeças sagradas. Eu posso falar porque estudo e leio. E o que eu tô querendo dizer é o seguinte: quando você não nomeia ou não traz ao cânone aqueles artistas que foram invisibilizados e perderam o nome, você cria um outro cânone em que só terá uma voz única do cânone. E aí você tem um esquecimento muito forte.

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Claro que as condições da época, muitas pessoas morriam cedo, muitos autores produziam muito e não assinavam, tem vários fatores, mas esse debate tem que ser feito, porque senão o Acervo da Laje pode vir a ser apagado um dia. É por isso nos insurgimos no refinamento do que estamos fazendo. Quando vamos para uma exposição, cada artista apresenta sua obra. Então quem estava aqui em Salvador e foi para a abertura de Brasil futuro: As formas da democracia viu que foi assim. Lilia Schwarcz, Margareth Menezes, e todos que estavam lá conheceram um por um, uma por uma. A Bahia sempre foi ponta de lança nessa questão artística, na questão estética, na provocação dentro da cultura brasileira. Acho que isso é muito bonito de ser dito, de ser conversado: por que o 2 de julho [dia da Independência da Bahia] não é a festa por excelência da brasilidade, da Independência do Brasil? Porque quem escreveu o cânone da arte e da história brasileira não fomos nós. Aí você vai ter que pesquisar quem veio fazer a missão francesa no Rio de Janeiro, quem fez os institutos geográficos de história, essas coisas todas. Que representatividade tinha e tem nesses espaços? Quantos curadores negros ocupam espaços de poder em museus? E nós falamos por nós! Não tem Universidade falando pelo Acervo da Laje, é o Acervo da Laje falando sobre o Acervo da Laje, e o Acervo da Laje falando sobre sua população. E essa é uma provocação que dá autonomia para pensarmos questões de curadoria e de diálogo. Mas o que sofremos ainda é a falta de dinheiro. Não tem financiamento pra nós.

“Guardamos a memória desse território, temos artefatos históricos. Essa garotada toda das periferias, na maioria das vezes, não tem na circunvizinhança delas espaços de arte. Isso incide diretamente na elaboração, na orientação e no projeto de vida para o futuro diferente”- José Eduardo Ferreira Santos

E qual a solução? Do que vocês precisam?
Preciamos de receita, de financiamento plurianual. Porque você não pode ter um espaço de duas pessoas, com um grupo de outras 10 que se dispõe a trabalhar para ganhar pouquíssimo ou quase nada, e fazer o que estamos fazendo pela Bahia e pelo Brasil, pela história da arte. Estamos entrando na história, nos catálogos, estamos começando a discutir, fazer provocações e tensionamentos que nunca foram feitos.

Aí vem as minhas perguntas: Será que é a repetição de um racismo estrutural? Será que é porque não temos um nome estrangeiro para chamar de nosso? Se tivéssemos o nome estrangeiro já não seria uma galeria? Não seria uma fundação? Porque tem isso também! Eu sou sobreeducado, mas nunca vou ter sucesso nessa cidade porque não sou amigo do rei. Eu sou um sobreeducado, estudei todos os níveis que a academia me permitiu e nem nela estou porque sou uma pessoa livre, e a liberdade às vezes tem seu preço. Eu me pago para viver. A gente é bem querido por todo mundo, muito querido por muita gente. Eu não tenho a menor dúvida que as pessoas gostam de conversar sobre essas coisas, porque querem novos diálogos. Mas não sei se falta uma empresa grande financiar por cinco, 10 anos. Está mais fácil uma instituição internacional do que uma nacional, mas estamos tentando.

A Vilma e eu vivemos muito bem com o que conseguimos fazer. Não exorbitamos, não temos apartamento na Barra ou em Ondina. Mas queríamos que um grupo de jovens e produtores que fazem parte dessa equipe pudesse ter a paz de receber mensalmente para não ficar feito doido, correndo para aqui, correndo para ali. Muda governo, sai governo, prefeitura, estado e nada?! A pior coisa que você faz com alguém que está trabalhando com representação e arte é invisibilizar. E invisibilizar é não pagar, é não chamar para fazer as coisas, é não dar condição para se sustentar, é ter gente que vai nos boicotar na comissão de projetos para museologia… E se eu descobrir eu vou dar os nomes!

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José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, fundadores do Acervo da Laje. (Acervo da Laje/arquivo)

O que estamos fazendo é política pública! Como eu venho de saúde pública, sei que estamos fazendo um lenitivo, no sentido de dar outras narrativas, repertórios possibilidade de poéticas e sonhos. É um trabalho preventivo à longo prazo, porque nos últimos 13 anos devemos ter recebido mais de 1 milhão de pessoas.

O que eu falo da questão do financiamento é justamente para que isso potencialize outras vidas aqui dentro. Então até que ponto, eu me pergunto, interessa que nós sejamos vistos aqui na cidade como pessoas que trabalham com arte? Porque é muito difícil você conciliar, na história brasileira, arte e periferia, arte e subúrbio, beleza, memória e periferia. Acho que, se não entenderam ainda, está demorando demais. Depois de fazer esse rodopio todo, não terem entendido… Espero que entendam. E acho também que estamos chegando na dimensão do tempo. Vai ter um momento que, se isso não chegar, infelizmente teremos que fechar. Porque se o fluxo de pessoas, o fluxo de obras, o fluxo de gente, de tudo, prejudicar nossa saúde, nossa sociabilidade, nosso bem-estar, não é mais Acervo da Laje. Não se pode perder a vida, não tem causa que valha a vida! Então se for para fechar, fechamos. Obrigado Brasil, você venceu! As trevas para você de novo.

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(Acervo da Laje/divulgação)

O que está acontecendo é isso: enquanto tá todo mundo feliz sendo militante de internet, as forças do mal estão operando em todos os níveis, para os adultos, crianças, adolescentes, para todo mundo. As forças da direita, as forças retrógradas. E isso resultou na demonização da arte. Deu nessa coisa de que todo artista é rico, tem lei Rouanet. O que é isso? Aqui entra todo mundo! Ninguém nunca teve um ato racista em relação a essas obras. Qual é o problema? O problema é que você tem que educar para a arte. Você tem que educar para a beleza, você tem que educar para política. Mas quem educa se não tem ninguém? Não tem centro cultural mais…

Podemos pensar que o trabalho de vocês é de base?
Chegou no ponto! Quem vai para os espaços culturais hoje? Acabou. As igrejas fazem o papel de centro cultural, elas formam as pessoas. Quem está no poder não olha para a base. E esse é um problema, mas eu já falei até com a querida Maria Marighella: tem que olhar para a base, porque senão… A coisa não está ganha, a coisa está sendo formada contra nós toda noite. É mesmo um problema de estrutura do Brasil, esse país pessoalista. Quando está no poder não olha para baixo e tá feito. E nós aqui todo dia recebemos visita, criança, escola, fazendo um trabalho pedagógico. Nós abrimos as portas do Acervo e isso não é reconhecido. Mas nós temos o poder de falar… Eu imagino quantos espaços estão fechados. E sempre pergunto: Qual a representação de uma mulher negra no museu para você? Antes de você nos conhecer, onde você veria essa mulher negra no museu? Onde você vê a mulher negra no museu? Na vida real, onde é que você vê as mulheres negras no museu? Aqui, a mulher negra é dona da porra toda! Isso é um grande problema, né? É uma preta retinta e um preto não retinto.

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(Acervo da Laje/divulgação)

A sociedade brasileira vai sempre querer nos botar no quartinho da empregada, mas nós já arrombamos a porta do quartinho da empregada com louvor e glória, com alegria e amor, com sorriso e deboche. Porque o deboche há de derrubar as estruturas! Quando eu tinha dez, onze anos, olhava da laje daqui para o asfalto e dizia que estávamos em São Paulo, que o asfalto era São Paulo, dado o tamanho da impossibilidade de se locomover, de sair. Eu não quero mais isso. Quero que as crianças tenham o futuro! É para aquele menino que falou conosco quando viemos até aqui andando, que disse: “eu gosto de ir para lá e vou falar com minha professora para ela ir de novo”. É para isso. É para ele ter repertório. E aí vai chegar a obra de arte e ele vai poder tocar, vai poder ter uma experiência. Aquilo, na cabecinha dele, quando ele tiver a idade de tomar decisões, ele vai dizer: “eu tenho repertório!” . É por isso. Porque quando afastaram a arte das periferias, sabemos no que dá. Deu essa desigualdade galopante que insiste em, como um cupim na madeira, destruir o Brasil.

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O que é pertencimento e território para o Acervo da Laje?
Primeira grande coisa é estar nele. O primeiro nível de pertença, de convivência, é com a ancestralidade. Aqui está nossa centralidade e aqui está o nosso futuro. Nessa centralidade, que é feita dos nossos pais, avós, mães, fazeres e práticas aqui no território. É fazer uma coisa que nunca foi feita e que nos orgulhamos muito. Na exposição A memória é uma invenção, levamos uma série de azulejos com o nome de todos os bairros daqui do Subúrbio Ferroviário. Isso para trazer o imaginário que é repertório e o repertório que é imaginário. Porque sem repertório e imaginário você não vive.

Estamos fazendo a representação de um território inventando, criando memória, trazendo memória à tona. Eu acho que o legado vai ser esse. Isso já está no mapa do Brasil, no mapa do mundo. Quando estudei a violência, acho que eu não tinha a possibilidade de tocar nessa ferida sem dar uma resposta. Agora tocamos nessa ferida e a resposta está sendo dada. E aí a grande pergunta é: qual vai ser a próxima curadoria, a próxima exposição e o próximo financiamento? Como é que vamos fazer isso? Porque sempre que você vier aqui ou ver que estamos fazendo, você vai entender que nós estamos sempre pensando em algo novo. Eu podia estar parado reclamando, mas estou fazendo curadoria. Se você chegar lá e dizer “quero 500 obras”, têm! “Quero mil obras”, têm!

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(Acervo da Laje/divulgação)

E tudo isso trabalhando, descobrindo as pessoas, descobrindo artistas, descobrindo gente que está produzindo arte e trazendo isso para o mundo. Somos um acervo pungente e novo. E agora tem Dos Brasis no Sesc Belenzinho, que tem uma parede de placas do Acervo da Laje. Porque agora a tendência das pessoas será copiar os nossos displays e dispositivos. Periferia vai valer alguma coisa. Sabe aquela coisa de “preto faz força e branco fica vermelho”? Agora está começando. Você vai começar a ver espelhinhos em expografias, vai começar a ver sininho batendo, vai começar a ver caixa de transportadora virando suporte de obra, vai ver fitinha do Bonfim. Por quê? Tudo que eles pensavam era uma expografia eugenista, o cubo branco. nós quebramos o cubo branco!

Por ser um acervo pungente e novo, você acha que persiste algum nível de barreira ou fronteira no olhar das pessoas para as obras e artistas do Acervo da Laje nos museus?
É aquela coisa… Os museus são tão brancos que precisam de nós. Vai precisar de arte negra, de arte indígena, de arte do inconsciente. Eu queria que muitos museus comunitários, muitos espaços de arte comunitária, estivessem fazendo esse mesmo movimento de levar seus artistas, de ter essa visibilidade para provocar. Tem muita gente de curadoria que está quebrando o cânone também. Então, não estamos sozinhos. Estamos em uma era da curadoria que é uma era de desconstrução. A Bienal de São Paulo deste ano é um estouro, porque quebra uma hegemonia. Mas aí claro que isso tudo são conquistas, então pode ser que quando a gente morra isso já tenha sido quebrado e os acervos comunitários vão compor espaços como o MASP, entre outros. Pode ser que estejamos fazendo uma pedagogia de como se chegar perto desses espaços. Agora falta a restituição e a reparação. E a reparação é dinheiro, financiamento, cuidado e afeto. O que não podemos é deixar que, numa mesma cidade, um espaço seja privilegiado e outro não, sendo que nós temos 13 anos de trabalho.

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José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, fundadores do Acervo da Laje (Acervo da Laje/divulgação)

Como vocês têm se mantido de pé? O que tem sustentado financeiramente vocês?
Estamos participando do Museum Future, um projeto do Goethe da África do Sul que está ajudando a pensar o futuro do Acervo da Laje durante um ano. Há um pequeno financiamento que ajuda bastante. Ajuda a manter a internet, a manter a casa, a fazer as coisas. É um projeto que surgiu antes da pandemia para pensar o futuro dos museus. Vilma e eu participamos de uma publicação à convite da Luisa Proença, à época do MASP, para escrever um artigo, um capítulo de um um livro hoje publicado em inglês e alemão. Nele, tem todas as grandes experiências de museus do mundo. E aí fomos convidados para participar desse grupo de estudos junto com museus da Índia e museus da África, para gente fazer reuniões esse ano, para pensar ações para projetar o Acervo no futuro.

É isso: o futuro vem da África, de onde a gente veio! É a África que está cuidando de nós! Por isso que somos livres. Quem nos pariu está nos embalando, axé pra vida toda! E a cidade madrasta que não olha pra nós, estamos dando o melhor para ela, porque a mãe está dando leite, água, não está nos deixando ficar no caos. Dá serenidade, paz. Talvez estejamos nesse momento também. Aqui é uma encruzilhada. Se você entende o que é uma encruzilhada, é isso daqui. Um artigo que escrevemos, uma palestra que damos, uma pessoa que recebemos, provoca alguma coisa naquela pessoa e na estrutura.

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